A prova pericial é um dos temas que mais gera questões para o processo penal, sobretudo em casos que envolvem crimes relacionados à atividade empresarial. Nesses casos, que costumam tratar de matérias financeiras, comercias etc. de alta complexidade, a prova pericial tem um papel de extrema relevância, pois se faz necessária não só para provar a ocorrência de determinados fatos, mas também para explicar como ocorreram, uma vez que a maioria dos operadores jurídicos não dominam essas áreas.[1]
Por Alvaro Augusto Orione Souza e Miguel Fragelli
A prova pericial é um dos temas que mais gera questões para o processo penal, sobretudo em casos que envolvem crimes relacionados à atividade empresarial. Nesses casos, que costumam tratar de matérias financeiras, comercias etc. de alta complexidade, a prova pericial tem um papel de extrema relevância, pois se faz necessária não só para provar a ocorrência de determinados fatos, mas também para explicar como ocorreram, uma vez que a maioria dos operadores jurídicos não dominam essas áreas.[1]
Logo, como não têm formação nessas matérias, os juízes costumam ter uma forte dependência dos peritos, tendo os primeiros uma grande deferência ao que os últimos afirmam em seus exames. Assim, a prova pericial é tratada como a rainha das provas, sendo determinante para o resultado final do processo.[2]
Nesse cenário, é natural que os particulares envolvidos em determinado caso queiram influenciar na valoração do juiz sobre a prova pericial. Ocorre que, no processo penal brasileiro, não há como os particulares diretamente solicitarem aos órgãos oficiais que realizam exames periciais, que façam certa análise entendida pela parte como imprescindível. Para tanto, necessitam da concordância do Delegado de Polícia, de um membro do Ministério Público ou até mesmo do juiz.
Assim, uma alternativa que há para os particulares é recorrer a peritos privados. Uma pessoa que se entende como vítima de um crime pode pedir que seja confeccionada uma perícia particular antes mesmo de requerer a instauração de um inquérito policial para apurar o fato, até para garantir que existem indícios mínimos da prática de um crime, que justifiquem a própria provocação à autoridade policial. Por outro lado, um investigado ou acusado pode pedir uma perícia particular para demonstrar que não cometeu nenhum delito, o que pode inclusive servir para rebater as conclusões de uma perícia oficial em seu desfavor.
Nesse sentido, em 2008, o Código de Processo Penal (CPP) foi reformado e passou a prever a figura do assistente técnico. Conforme o artigo 159, §§ 3º a 5º do CPP, trata-se de um assistente que as partes podem indicar para, após a conclusão da perícia oficial, realizar um parecer sobre a matéria examinada, apontando questões que a parte e seus representantes não teriam a capacidade técnica para fazerem por si só.
Esperava-se que, por meio dessa alteração, fosse fortalecido o princípio do contraditório,[3] permitindo que as partes pudessem ter mais ferramentas para tratar de perícias, sem que ficassem reféns da conclusão exposta na perícia oficial. No entanto, não foi isso o que ocorreu.
Pareceres periciais contratados por particulares não encontram muita dificuldade para serem admitidos no processo penal. Contudo, é na etapa da valoração dessa prova que os problemas costumam aparecer.
Quando juízes têm de apreciar o conteúdo dessas perícias, não é raro que recorram à ideia de que, se um perito foi contratado unilateralmente pela parte, sua análise não pode ser considerada como completamente idônea. O trecho a seguir perfeitamente sintetiza esse problema:
“De qualquer forma, impossível dar maior valor à perícia particular em detrimento da oficial.
Primeiro porque, o laudo particular foi feito por pessoa contratada pelo próprio acusado e de sua confiança, o que já sugere que possa haver alguma parcialidade; e depois porque foi realizada muito depois dos fatos, sem exame visual do local do acidente no momento em que ele aconteceu e, portanto, baseada em suposições que partiram do próprio laudo oficial.”[4]
Esses dois argumentos não têm a capacidade de afastar as conclusões de uma perícia particular. O primeiro, sobre a parcialidade, não passa de uma especulação, que em nada se relaciona com o mérito do parecer pericial. O segundo argumento, sobre o momento de realização dos exames, retira valor desse parecer utilizando um requisito que o próprio CPP impõe para os trabalhos do assistente técnico, isto é, que sejam realizados após a finalização da perícia oficial, o que não faz sentido. Seria quase como anular o que foi estabelecido na reforma de 2008 para fortalecer o contraditório da prova pericial.
O argumento sobre a parcialidade do perito merece considerações especiais, pois parece ser fruto de uma confusão entre os motivos que fazem uma parte juntar um parecer pericial ao processo e os motivos que levam um perito a tomar certas conclusões. Como nos ensina Carmen Vázquez, por mais que a parte apenas apresentará ao processo um parecer que tenha conclusões que lhe sejam favoráveis, isso não significa que o perito tinha a intenção de favorecê-la ao realizar os seus exames, sendo completamente factível que, em casos de desacordo, o perito particular esteja correto e o perito oficial esteja equivocado.[5]
Além do que, os peritos particulares – como, de resto, os oficiais – são, na imensa maioria das vezes, profissionais de áreas técnicas reguladas por lei, submetidos a controle pelos seus órgãos de classe. São contadores, engenheiros, médicos, etc., que, se faltarem com a ética na confecção dos seus pareceres, estão sujeitos às sanções disciplinares e legais. Não se pode, portanto, presumir que o parecer particular seria, de antemão, viciado, que o perito privado seria necessariamente corrompido, sem a existência de qualquer indício concreto nesse sentido.
Na valoração de uma perícia particular a fim de se decidir se as suas afirmações estão corretas, não é possível se contentar com especulações sobre uma suposta parcialidade ou sobre o momento em que os exames foram realizados. Para tanto, deve ser analisada qual é a sua confiabilidade[6] – o que inclusive pode ser de grande utilidade para determinar se deve prevalecer sobre a perícia oficial em caso de desacordo entre as duas.
Em resumo, ao confeccionar o seu laudo, o perito deve demonstrar qual é a fiabilidade empírica do método, das técnicas etc. que empregou nos seus exames, demonstrando a aptidão dessas para medir o que se pretende e o grau de precisão que a comunidade de especialistas na matéria analisada lhe confere, bem como quais fatores podem influenciar nos resultados apontados.[7]
A respeito disso, tem-se que não há nenhuma regra no nosso Código de Processo Penal que estabeleça critérios a serem considerados na valoração de perícias, muito menos o critério supracitado para a valoração de perícias particulares. Assim, em uma primeira análise, seria possível entender que haveria ampla margem de discricionariedade para os julgadores.
No entanto, o artigo 3º do CPP admite que, em uma situação como essa, sejam aplicados dispositivos do processo civil ao processo penal. E, desde 2015, o Código de Processo Civil não só estabelece, em seu artigo 473, inciso III, que o laudo pericial deverá conter “a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente aceito pelos especialistas da área do conhecimento da qual se originou”, bem como que, nos termos do seu artigo 479, na valoração de perícias, o juiz deverá indicar “os motivos que o levaram a considerar ou a deixar de considerar as conclusões do laudo, levando em conta o método utilizado pelo perito”.
Logo, quando lidos em conjunto, referidos artigos estabelecem que, na valoração da prova pericial, o juiz deve considerar a confiabilidade do método utilizado pelo perito. Se isso não estiver indicado no laudo, esse sequer deveria ser considerada pelo juízo.
É preciso lembrar que, a despeito de quase sempre buscarem o conforto oferecido pela “prova técnica” produzida pelo perito oficial, os juízes não são obrigados a seguir o laudo do perito; assim, da mesma forma como os advogados de cada parte expõem seus argumentos jurídicos, e o magistrado se convence por aqueles que lhe pareçam melhores, o confronto da perícia oficial com o parecer técnico do assistente deveria ser encarado sob a mesma perspectiva: qual das duas peças técnicas oferece os melhores fundamentos para a decisão?
Assim, tendo em vista a lacuna do Código de Processo Penal em relação à valoração da prova pericial, devem ser utilizadas os dispositivos previstos para tanto no Código de Processo Civil.[8] Trata-se de uma regra que deve ser observada na valoração de todas as provas periciais, inclusive as realizadas por peritos oficiais, mas que pode ter especial importância no que se refere à apreciação de perícias particulares.
Por meio da adoção dessas regras de valoração da prova pericial, pode ser dado um passo rumo ao que importa nessa etapa: a apreciação da confiabilidade empírica dos procedimentos adotados pelo perito. Será possível fazer uma valoração não só mais atenta ao conteúdo da perícia particular, mas também mais objetiva, que vá além de suposições sobre imparcialidade.
Portanto, seria fortalecido o princípio do contraditório, o que nada mais é do que objetivo buscado pela reforma de 2008, mas que ainda encontra obstáculos para sua concretização na prática.
[1] MALAN, Diogo. Processo penal aplicado à criminalidade econômico-financeira. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 114/2015, p. 293, Maio – Jun / 2015.
[2] Idem, p. 293-294.
[3] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas: Lei 11.690. de 9/6/2008. In: MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. As reformas no processo penal: as novas leis de 2008 e os projetos de reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 274-275.
[4] TJSP: Apelação Criminal 0000256-08.2016.8.26.0575; Relator (a): Alexandre Almeida; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Criminal; Foro de São José do Rio Pardo – 1ª Vara; Data do Julgamento: 03/02/2021; Data de Registro: 11/02/2021
[5] VÁZQUEZ, Carmen. Prova pericial: da prova científica à prova pericial. São Paulo: Editora Juspodivm, 2021, p. 133.
[6] Idem, p. 345-346.
[7] Idem, p. 355-357.
[8] KIRCHER, Luís Felipe Schneider. A valoração da prova pericial no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 27, n. 153, p. 160, mar. 2019.