Por Odel Antun e Helena Gobe Tonissi
A entrada em vigor da Lei 14.132/21, que incluiu o artigo 147-A no Código Penal com a tipificação legal do crime de perseguição ou stalking, representou importante contribuição para a visibilidade dessa modalidade de violência. Todavia, tanto porque o delito de stalking muitas vezes precede a prática de crimes mais graves, quanto pela própria danosidade da conduta da perseguição, a tutela penal poderia ter vindo acompanhada da criação, pelo legislador, de tutela processual, de natureza cautelar, específica para essa modalidade delitiva.
O termo “stalking” emergiu nos Estados Unidos a partir de casos em que fãs, muitas das vezes portadores de algum transtorno psíquico, perseguiam e assediavam famosos, como, por exemplo, a tentativa de homicídio da atriz Theresa Saldana, em 1982, e o assassinato da atriz Rebecca Schaeffer, em 1988 [1]. No Brasil, a expressão foi muito difundida em 2016, quando a modelo e apresentadora Ana Hickmann teve seu quarto de hotel invadido por um fã que já a perseguia constantemente por meio das redes sociais.
Foi o reconhecimento dos riscos e ameaças que permeiam o comportamento do stalker, somado à severidade de consequências altamente prováveis, que levaram à criminalização da conduta. Hoje, o stalking, da forma como tipificado no Código Penal, é caracterizado por atos reiterados de perseguição, vigilância e assédio, que ameacem a integridade física ou psicológica da vítima, por restringirem sua capacidade de locomoção, ou que, por qualquer outra forma, perturbem sua liberdade e privacidade [2].
Essa monitorização pode ocorrer por meio de mensagens e ligações indesejadas, e-mails, interações em redes sociais de forma intimidatória, comparecimento em locais frequentados pela vítima, entre outros. Nesse contexto, é comum que as vítimas, com sua vida privada e rotina invadidas, tenham as decisões e comportamentos afetados pela imprevisibilidade da atuação do stalker, mudando hábitos, horários, trajetos, permanecendo em estado constante de alerta [3]. Há, então, implicações na integridade psicológica da vítima, temerosa por sua segurança e liberdade.
A relevância da perseguição pode ser constatada sob dois aspectos: (a) a relevância da perseguição por si só e (b) a relevância da perseguição como antecessora de um crime mais grave a ocorrer. Embora não seja a maioria dos casos de stalking que culmine em homicídio, é recorrente que comportamentos de stalking precedam casos de homicídio ou ainda que escalem a outras formas de violência, como a violência física ou sexual [4].
Logo, além de representar um risco em si mesmo, a perseguição também é constituída como fator de risco de violência e, em alguns casos, um fator de risco de homicídio. Não por outra razão já é reconhecida como um fenômeno associado a múltiplos riscos. Para a vítima, tomada por medo, implica aviso de perigo e imprevisibilidade, assumindo a conotação de ameaça constante.
Desse modo, a tipificação legal, sem a utilização de medidas cautelares efetivamente protetivas, não parece ser capaz de conter as consequências do stalking e a ascensão da violência.
Muito embora vários dos casos de stalking sejam perpetrados por homens contra mulheres, em contexto de relação doméstica e, portanto, permitam a utilização de medidas de distanciamento no âmbito da Lei Maria da Penha, é preciso reconhecer que existem homens vítimas do delito e, também, vítimas mulheres fora do contexto de violência doméstica e familiar. Claro, portanto, que o crime de stalking não se manifesta apenas em contexto doméstico e familiar.
Nessa toada, sabe-se que a doutrina e a jurisprudência têm uma interpretação restritiva das hipóteses de aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, voltadas à proteção da mulher, num contexto de violência doméstica ou familiar. E, realmente, a construção legislativa especial não autoriza o uso de cautelar específica para casos genéricos, isto é, fora da especialidade em que foram previstas as medidas.
No âmbito do Código de Processo Penal, que não tem aplicação exclusiva a contextos ou tipos específicos, temos a seguinte situação no que se refere ao delito em exame:
Como a pena máxima do art. 147-A não ultrapassa o patamar de 4 anos demandado pelo art. 313, I do CPP, não cabe a prisão preventiva do agente.
A probabilidade de ocorrer um evento mais gravoso, aliada à sua previsão, legitima a imposição de restrições processuais penais, justamente como forma de fazer cessar a prática delitiva e de proteger os bens jurídico-penais (liberdade e segurança pessoal) tutelados pelo tipo.
Assim, e até mesmo em observância aos princípios da intervenção mínima, subsidiariedade e proporcionalidade, não sendo recomendado o encarceramento provisório e estando as medidas protetivas de urgências restritas ao âmbito da Lei Maria da Penha, é possível a imposição de medidas cautelares diversas da prisão (art. 319 do CPP) como mecanismo apto a cessar a perseguição.
As medidas cautelares diversas da prisão foram introduzidas no Código de Processo Penal como solução intermediária entre a liberdade e a prisão processual, sendo aplicáveis independentemente do gênero do agente ou da vítima, bem como de contexto específico de realização de determinado tipo pelo agente. Pode-se mencionar, a título exemplificativo, como medidas relevantes para se resguardar a integridade física e psicológica das vítimas de stalking aquelas previstas nos incisos II e III do art. 319 do CPP [5]:
“Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
[…]
II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;”
No mesmo sentido, a jurisprudência pátria já reconhece que, em casos nos quais um indivíduo, que não seja a mulher em situação de vulnerabilidade doméstica, se perceba vitimado por perseguição, devem ser aplicadas, para sua proteção, as medidas cautelares diversas da prisão, previstas no artigo 319 do CPP:
“[…] VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. VÍTIMA DO SEXO MASCULINO. INAPLICABILIDADE DAS MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NA LEI Nº 11.343/06. MEDIDAS CAUTELARES PREVISTAS NO ARTIGO 319 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. POSSIBILIDADE.[…]
3. Embora o homem possa ser vítima de violência doméstica (artigo 129, 9º do Código Penal), as medidas protetivas, previstas na Lei nº 11.340/06 – Lei Maria da Penha possuem aplicação restrita às mulheres, eis que lhe é garantido tratamento diferenciado ante sua presumida vulnerabilidade e fragilidade frente às agressões do homem, conforme se extrai da leitura dos artigos 1º e 22 da mencionada Lei, o que não impede a proteção das vítimas do sexo masculino a ser efetivada por intermédio da decretação de medidas cautelares prevista no Código de Processo Penal, especialmente aquelas arroladas nos incisos II e III, do artigo 319, do referido diploma normativo.
4. Recurso conhecido como apelação e improvido.
(TJ/DFT, 20140110641569RSE, Relator: Cesar Loyola, 2ª Turma Criminal, j.07/8/2014, DJE: 15/8/2014)” [6]
As medidas devem ser arbitradas considerando as peculiaridades de cada caso, de modo que se mostrem adequadas e suficientes para resguardar a integridade da vítima.
De todo modo, em que pese as medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP sejam hoje uma saída, evidentemente não possuem aplicação ampla pelos órgãos de polícia investigativa, especialmente pela ausência de previsão específica do legislador e pela necessidade de construção interpretativa mais elaborada e indireta.
Dessa forma, ainda que as medidas cautelares possam ser utilizadas como mecanismos para produção de efeitos análogos àqueles promovidos pelas medidas protetivas de urgência, previstas no âmbito específico da violência doméstica, a ausência de previsão específica na legislação de medidas que possam ser aplicadas de maneira direta aos casos de stalking, para todas as vítimas, torna a tutela pretendida inócua.
A própria forma de execução do tipo de stalking, que exige habitualidade e se caracteriza justamente pela intromissão do agente num círculo de privacidade da vítima, com a prática de atos que lhe ferem a liberdade e a segurança, poderiam ser perfeitamente coibidos com a previsão específica de uma medida protetiva que impedisse o agente de entrar em contato ou de se aproximar do seu alvo de perseguição. Ou seja, a cautelar protetiva é praticamente intuitiva para fazer cessar os atos de execução da conduta criminosa.
Portanto, o reconhecimento do potencial lesivo do stalking e a probabilidade da escalada da violência com a ocorrência de crimes ainda mais graves, bem como a própria natureza da execução do delito e a dificuldade de aplicação das medidas cautelares gerais de maneira mais automática pelos órgãos de persecução penal, impõem ao legislador sejam especificadas medidas protetivas especiais, a exemplo do que se construiu para os casos de violência contra a mulher em contexto doméstico, capazes de dar efetividade à tutela penal, resguardando a liberdade e a segurança das vítimas, de forma ágil e eficaz.
NOTAS
[1] PRANDO, Camila Cardoso de Mello; BORGES, Maria Paula Benjamim. Concepções genderizadas na análise de deferimento das Medidas Protetivas de Urgência (MPUs). Revista Direito GV, v. 16, n. 1, jan./abr. 2020, e1939. doi: https://doi.org/10.1590/2317-6172201939.
[2] Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/343381/o-novo-crime-de-perseguicao–stalking>. Acesso em 17/04/2023.
[3] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-abr-06/academia-policia-stalking-crime-perseguicao-ameacadora>. Acesso em 17 de abril de 2023.
[4] GRANGEIA, Helena; MATOS, Marlene. Riscos associados ao stalking: violência, persistência e reincidência. Disponível em: <https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/30967/4/Homens%20de%20quem%20n%C3%A3o%20se%20fala%20Psiquiatria,%20Psicologia%20%26%20Justi%C3%A7a_2012.pdf>. Acesso em 14 de abril de 2023.
[5] BRASIL. Decreto-Lei 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Rio de Janeiro, DF, out 1941.
[6] TJ/DFT, 20140110641569RSE, Relator: Cesar Loyola, 2ª Turma Criminal, j.07/8/2014, DJE: 15/8/2014.