Stalkerware: Desafios de tipificação e de enfrentamento
14/11/2025Stalkerware: Desafios de tipificação e de enfrentamento
14/11/2025
Por Helena Gobe Tonissi para o Consultor Jurídico
O crime de lavagem de capitais, previsto no artigo 1º da Lei nº 9.613/98, consiste na conduta de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Embora a legislação tenha sido substancialmente modificada pela Lei nº 12.683/2012 — responsável por maximizar as hipóteses de incriminação, sobretudo ao eliminar o rol taxativo de crimes antecedentes, permitindo que qualquer infração penal gere responsabilidade pelo delito subsequente de lavagem —, permanece lacuna normativa quanto à punição da autolavagem no ordenamento jurídico brasileiro [1].
Verifica-se, portanto, que o crime de lavagem de capitais criminaliza a ocultação ou dissimulação de bens, valores ou direitos provenientes de qualquer infração penal, com o propósito de mascarar sua origem ilícita e possibilitar que, posteriormente, sejam convertidos em ativos aparentemente lícitos no sistema econômico [2]. Essa aparência de licitude é construída por meio da reinserção dos recursos ilícitos na economia formal, de modo a dissimular sua procedência criminosa e dificultar o rastreamento e a consequente apreensão pelo poder público.
Assim, embora possua autonomia típica, o crime de lavagem de capitais também apresenta natureza acessória, pois necessariamente sucede a prática de uma infração penal antecedente, da qual se origina o proveito econômico que se pretende ocultar ou dissimular, conferindo-lhe aparência de licitude. Nesse sentido, a consumação da lavagem de capitais não se confunde com o simples uso ostensivo do produto do crime antecedente. Aliás, necessário enfatizar que a mera utilização, fruição ou gozo dos valores ilicitamente obtidos integra apenas o exaurimento do delito antecedente, configurando pós-fato impunível [3].
É justamente nesse contexto que se insere a modalidade da autolavagem, definida como a possibilidade de atribuir ao mesmo agente a responsabilidade penal tanto pela infração antecedente quanto pelo subsequente delito de lavagem de capitais. Trata-se, portanto, de situação em que o próprio autor do crime antecedente atua posteriormente para ocultar ou dissimular os bens, valores ou direitos dele provenientes, buscando conferir-lhes aparência de licitude.
Portanto, a grande particularidade do crime de autolavagem reside justamente na necessidade de distinguir a lavagem de capitais, enquanto conduta autônoma, do mero exaurimento do crime antecedente [4]. Isso porque o aproveitamento dos valores oriundos da infração penal antecedente constitui, em regra, um desdobramento natural da própria prática criminosa, na medida em que o agente inevitavelmente precisa dar alguma destinação aos recursos ilicitamente obtidos.
Diante da omissão da legislação brasileira quanto a essa modalidade específica, os tribunais, instados a se manifestar, interpretaram o silêncio normativo como permissivo, admitindo a punição do mesmo agente tanto pela infração penal antecedente quanto pelo subsequente delito de lavagem de capitais, em regra, em concurso material, com a consequente soma das penas aplicáveis [5].
Contudo, esse reconhecimento vem acompanhando de importantes ressalvas, especialmente a exigência de que sejam verificados atos independentes de ocultação ou dissimulação do produto do crime já consumado. Assim, para que a autolavagem possa ser punida sem violar a vedação ao bis in idem — isto é, sem impor dupla punição pelo mesmo fato —, é imprescindível comprovar que a conduta de lavagem, praticada pelo próprio autor do delito antecedente, configura nova ofensa, constituindo um injusto penal distinto e autônomo [6].
Julgamento introduz a noção de impropriedade do meio
Superada a discussão acerca da possibilidade de imputação da autolavagem, a problemática recai sobre a ausência de critérios objetivos e seguros para identificar quando essa modalidade efetivamente se configura, especialmente diante da falta de parâmetros regulatórios que permitam distinguir com clareza o que constitui crime de lavagem e o que representa mero exaurimento do delito antecedente [7]. E foi precisamente essa delimitação que o Superior Tribunal de Justiça enfrentou recentemente, ao reconhecer a impropriedade do meio em caso que envolvia simples transferências bancárias entre contas de mesma titularidade, absolvendo o acusado pela atipicidade da conduta.
No julgamento do AREsp 2.994.551/SP [8], constatou-se que, após a prática de estelionato mediante fraude eletrônica, o agente apenas transferiu o valor recebido por meio de máquina PagSeguro, vinculada ao seu próprio estabelecimento comercial, para outra conta de sua titularidade, no Nubank. A operação foi realizada de forma direta, totalmente rastreável e sem qualquer artifício de pulverização, fracionamento ou ocultação. Superada a incidência da Súmula 7/STJ, que impede o reexame de provas, considerando que a controvérsia restringia-se à análise da tipicidade penal, o ministro Rogerio Schietti Cruz, relator, consignou que:
“A controvérsia deste recurso consiste em definir se transferências de valores entre contas bancárias de própria titularidade do réu configuram atos de dissimulação da origem ilícita do numerário obtido. Tem razão a defesa. A mera transferência do valor não substancial obtido nas compras online realizadas na PagSeguro para outra conta do próprio acusado, no Nubank, em operação rastreável e direta, não revela sofisticação ou intuito de dissimulação.
Trata-se de operação simples, sem intervenção de terceiro, facilmente identificável por simples consulta bancária, como demonstrado pela pronta resposta da instituição financeira, que informou a “transferência do valor recebido, via Pix, para outra conta de titularidade de Ezequiel” (fl. 399). Veja-se que foram duas as compras e duas as transferências, em valores não pulverizados, o que, por si só, demonstra a impropriedade do meio para fins de acobertar a origem do dinheiro.”
Ao final, diante da ausência de manobras capazes de revelar a intenção de conferir aparência de licitude aos valores provenientes da atividade delitiva, o STJ reconheceu a violação dos artigos 1°, da Lei nº 9.613/1998 e 386, III, do CPP, concluindo que o acórdão recorrido não delimitou atos concretos voltados a ocultar ou conferir aparência de licitude ao produto do crime.
A decisão evidencia que, embora a legislação brasileira não tenha previsto vedação à autolavagem, tribunais vêm delimitando o alcance dos verbos “ocultar” e “dissimular”, conferindo contornos mais precisos à imputação. Tais verbos devem ser compreendidos dentro de uma expectativa de que as condutas efetivamente visem limpar, branquear, reciclar ou reinserir o dinheiro ilícito na economia formal, com aparência de licitude e sem restrições de uso.
Nesse contexto, a decisão introduz de forma expressa a noção de impropriedade do meio, que opera como um filtro prévio de tipicidade: um ato destituído de aptidão para ocultar ou dissimular não pode configurar o crime de lavagem de capitais. Assim, a incidência do tipo penal exige que o agente empregue mecanismo idôneo, efetivamente capaz de ocultar ou dissimular a origem dos valores.
O julgado também reforça a peculiaridade dogmática que legitima a punição da autolavagem. Não se trata de punir o simples ato de o autor do crime antecedente assegurar o proveito da infração, mas sim a prática de comportamentos posteriores e autonomamente dirigidos à dissimulação ou ocultação, de modo a lesar a administração da Justiça. É natural que o agente busque preservar ou tornar seguro o produto do crime, mas isso não se confunde com a realização de operações artificiais, destinadas a conferir aparência lícita a valores ilícitos.
Quando o ato é simples, direto, identificável e destituído de sofisticação, o meio revela-se impróprio para a finalidade de ocultar ou dissimular. Sendo assim, o núcleo do crime de lavagem não se encontra na mera movimentação dos valores, mas na produção de um resultado jurídico-econômico consistente na perda de rastreabilidade e na criação de aparência de licitude. Se a conduta não possui aptidão para dificultar a identificação da origem ilícita, falta tipicidade material.
Esse entendimento é especialmente relevante diante da ampla tipicidade historicamente atribuída ao delito de lavagem de dinheiro, que por muito tempo permitiu imputações ao autor do crime antecedente mesmo em situações de mera posse, guarda ou fruição dos bens ilícitos. O AREsp nº 2.994.551/SP delimita com precisão que a simples fruição dos valores derivados de atividade criminosa não configura, por si só, lavagem de capitais, reforçando a necessidade de verificar a intenção concreta, acompanhada de meio idôneo, de conferir aparência de licitude mediante a reinserção dos recursos no sistema econômico.
Em termos dogmáticos, é indispensável que o meio empregado pelo agente possua efetiva capacidade de produzir o resultado de “ocultar” ou “dissimular”. Condutas ingênuas, simplórias ou meramente bilaterais mostram-se incapazes de consumar o tipo penal, evitando a indevida expansão da lavagem para hipóteses em que o agente apenas usa, movimenta ou gasta o produto do crime antecedente.
[1] PERTILLE, Marcelo. Apontamentos acerca da autolavagem de dinheiro. In: BISPO, Andrea Ferreira; MARTINS, Fernanda; PERTILLE, Marcelo (org.). II Congresso Sul-Brasileiro de Direito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. p. 213.
[2] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais penais – comentários à Lei 9.613/98, com alterações da Lei 12.683/12. 2ª ed. Revista dos Tribunais. p. 66.
[3] SIMÃO, Pedro Eularino Teixeira. A criminalização autônoma da autolavagem de capitais sob a ótica da legalidade e proporcionalidade da intervenção penal estatal. Revista Científica do CPJM, Rio de Janeiro, v. 3, n. 10, p. 166-200, 2024. p. 184.
[4] BATTINI, Lucas Andrey; SOARES, Rafael Junior. Autolavagem de dinheiro: estudo crítico sob uma ótica de proteção da dogmática penal. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, v. 6, p. 145-164, abr./jun. 2021. p. 3.
[5] CALLEGARI, André. Autolavagem de dinheiro punível? Consultor Jurídico – ConJur, 3 jun. 2024. Disponível aqui.
[6] BATTINI, Lucas Andrey; SOARES, Rafael Junior. Autolavagem de dinheiro: estudo crítico sob uma ótica de proteção da dogmática penal. Revista de Direito Penal Econômico e Compliance, v. 6, p. 145-164, abr./jun. 2021. p. 9.
[7] VIDEIRA, Renata Gil de Alcantara. Tendências contemporâneas na criminalização da lavagem de dinheiro frente ao combate à corrupção no Brasil: a autolavagem em foco. 2022. 113 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Direito) – Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, 2022. p. 62.
[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial n. 2.994.551/SP. Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz. Brasília, 2025.