Por Helena Gobe Tonissi
Caminhamos a passos largos, não sem evidências, em direção ao enrijecimento da criminalização de condutas de violência contra a mulher e também na adoção de novos mecanismos de proteção às vítimas.
Em 2023, 1.467 mulheres foram mortas por razões de gênero, 258.941 mulheres foram vítimas de agressões em contexto de violência doméstica, 778.921 foram vítimas de ameaça, e ao menos 199 mulheres foram estupradas todos os dias [1]. Os dados revelam a necessidade de uma reparação histórica, pois foi a cultura do silenciamento e do desamparo que engessou a desigualdade de gênero que perdura até hoje. Por isso, devem ser aplaudidas as mudanças que, na contramão de uma expressão de poder e controle profundamente enraizada na sociedade, buscam reconhecer que a violência de gênero não é apenas um ato isolado de agressão [2].
A necessidade de um tratamento jurídico adequado a este fenômeno conduziu à criação da Lei Maria da Penha. Lei esta que não deve ser reduzida ao seu aspecto criminal, uma vez que inseriu a violência doméstica como violação de direitos humanos, e que, em seu aspecto constitucional, vigora a partir da proteção em quatro dimensões: prevenção, investigação, sanção e reparação.
Entre seus mecanismos, estão as medidas protetivas de urgência (art. 22 da LMP), que se dirigem ao fim de resguardar de maneira eficaz a vida e a integridade física, psicológica, moral e sexual das mulheres em situação de violência doméstica, e prescindem de inquérito policial ou de processo.
Ocorre que, em 2020, a Lei Maria da Penha foi alterada para estabelecer, como medidas protetivas de urgência, a frequência do agressor a centro de educação e de reabilitação e acompanhamento psicossocial (Lei nº 13.984/2020). Ou seja, além das medidas inicialmente propostas e comumente aplicadas, como é o caso da proibição de aproximação e contato com a ofendida, passou-se a determinar, ainda em sede cautelar, que o suposto agressor se sujeitasse à realização de estudo psicossocial e frequentasse grupo de agressores (centro de educação e de reabilitação).
Não fosse a evidência que o processo de aprendizagem leva tempo e que, como advertiu Calamandrei [3], sem a cautela ter-se-ia um remédio longamente elaborado para um doente já morto, essa alteração só pode ser explicada a partir do pressuposto da presunção de culpa.
Isso quer dizer que essas medidas são aplicadas antes do processo – constituído por uma sequência de atos que permitem a ampla defesa e o contraditório e, por isso, demanda tempo -, para superar o risco da intervenção estatal se tornar ineficaz ao final [4].
É verdade que, nos casos de violência contra a mulher, geralmente estão presentes circunstâncias especiais de risco que justificam a imposição de medidas protetivas de urgência. No entanto, alinhando-se com a cultura de poder fascista e autoritário, há uma onda de utilização indiscriminada das medidas cautelares, sendo impostas verdadeiras sanções (com caráter mais definitivo do que cautelar), sob a justificação da urgência e da necessidade.
Essa lógica acaba por subverter princípios fundamentais do Estado democrático de direito, consagrando algo muito próximo à ideia de justiça sumária. No presente caso, não mais para proteger a vítima, já que a mudança de uma cultura, apta a evitar uma nova violência, pretendida pelo acompanhamento psicossocial e grupos de reeducação, demanda tempo, mas sim para punir antecipadamente um sujeito que muitas vezes nem sequer figura como investigado e que, até o momento da imposição das medidas, não exerceu nenhuma de suas garantias de defesa no processo.
As garantias fundamentais dos indivíduos em face do Estado são violadas quando fica autorizada uma sanção, quase como um cumprimento antecipado da pena, desprovida de cautelaridade. Pior ainda quando, na prática, vislumbra-se o encaminhamento como consequência automática da imposição de outras medidas.
A pena depende da existência do delito e da experiência efetiva do Processo Penal, substituindo-se a vingança privada pelo poder punitivo do Estado, em que, ao cidadão, é garantido o devido processo legal, protegendo tanto a liberdade individual como a segurança. Por isso, o Processo Penal não se resume a um protocolo, mas é um rito, marcado por atos conhecidos, que antecedem a imposição de um castigo previamente definido [5].
De modo que o acusado é considerado inocente até que ele seja condenado por uma decisão definitiva. Por isso, o investigado não pode ser compelido a produzir ou a contribuir com a formação de prova contrária ao seu interesse, bem como não pode sofrer restrições pessoais fundadas na possibilidade de condenação. Então, o estado de inocência proíbe a antecipação dos resultados finais do processo [6].
O princípio da presunção de inocência e da não autoincriminação são verdadeiros vetores normativos do sistema, e a inversão dessa ordem natural (através das medidas cautelares) está subordinada ao cumprimento de requisitos e à tutela da efetividade, o que não se verifica das alterações recebidas pela Lei nº 13.984/2020.
Também não se está a questionar a efetividade do comparecimento de um agressor ao centro de educação e de reabilitação e ao acompanhamento psicossocial. Mas, se aponta a ausência de cautelaridade dessa medida. O vetor da aplicação de medidas protetivas em benefício da mulher é a necessidade de garantir a sua segurança. Assim, é cautelar a medida que proíbe o sujeito de se aproximar dela, determina que ele pague alimentos provisórios e o proíbe de frequentar certos lugares onde é provável que ela esteja, por exemplo.
Em todas as medidas elencadas acima, é possível vislumbrar a mulher vítima de violência como o centro de atenção, e a melhoria de algum aspecto da sua proteção, como um efeito imediato da medida.
A imposição, ao agressor, de comparecimento a centros de reabilitação e a sua submissão a estudos psicossociais, por outro lado, tem, como centro gravitacional da medida, o próprio agente, e não se vislumbra um incremento imediato no estado de proteção da vítima – apenas, no máximo, um efeito mediato e abstrato, se partirmos do pressuposto de que, assistindo aos cursos e se consultando com psicólogos, o sujeito estará menos propenso a cometer novas agressões.
Acontece que ter o agressor como centro e procurar prevenir novos crimes, pela atuação sobre a pessoa do agressor são a essência das penas, não das medidas cautelares.
Além das considerações tecidas, dentro do mesmo contexto é imprescindível considerar as consequências da antecipação dessa sanção ao sujeito e ao eventual processo correlato.
É certo que o estudo psicossocial não apresenta caráter unicamente informativo, mas evidencia aspectos referentes à realidade psicológica e social dos indivíduos envolvidos. Em outras searas, o estudo psicossocial já é inclusive compreendido como prova pericial. Tendo em vista seu gênero documental, poderia ele ser utilizado posteriormente como prova (produzida unilateralmente), com a finalidade de demonstrar a verdade e elucidar a tomada de decisão judicial pelo magistrado?
Do mesmo modo, os grupos reflexivos para agressores são compostos por reuniões conduzidas por profissionais da psicologia, sociologia, assistência social, do direito, promotores, juízes, delegados, médicos, enfermeiros, com intuito de permitir uma readequação comportamental em relação a essas violências. Poderiam os integrantes figurarem posteriormente como testemunhas, por exemplo? Qual seria o valor de uma eventual confissão dita pelo agressor, nessas esferas?
E, mais, quais são os impactos para uma pessoa inocente sujeita a essas sanções, com grande carga emocional e de violência envolvida, sem o devido processo legal? Afinal, nunca se pode desconsiderar que o indivíduo tido por agressor, a quem é imposta uma medida protetiva como essa, pode muito bem vir a ser absolvido das acusações que lhe são feitas, ao final do processo.
O cenário se torna ainda mais grave, uma vez que, caso o indivíduo inocente, amparado pela garantia constitucional de não ser obrigado a produzir provas contra si mesmo, deixe de comparecer ao estudo psicossocial e aos grupos reflexivos, poderá incorrer em hipótese de descumprimento de medida protetiva (art. 24, da LMP), o que o sujeitaria à prisão.
Conclui-se que, pautado em um motivo justo – necessidade de combater a violência contra as mulheres -, optou-se pela inclusão de medida protetivas que, pela ausência de cautelaridade, violam princípios constitucionais que são verdadeiros vetores do Processo Penal Brasileiro e basilares em um Estado Democrático de Direito, sem prejuízo de que as mesmas medidas, muito mais razoavelmente, fossem aplicadas como penas definitivas àqueles considerados culpados, depois de cumpridas todas as etapas do processo e da defesa. Aliás, nesse ponto, são sanções muito mais coerentes, e com grandes possibilidades de resultarem em mudanças, do que as penas restritivas de liberdade.
Tratam-se de medidas de caráter educativo e psicológico que, para alcançarem efetividade, necessariamente devem se prolongar no tempo. Nas palavras de Calamandrei, são um remédio longamente elaborado e, em caráter cautelar, o doente já morto são as mulheres vítimas de feminicídio. Por isso, se a preocupação do Estado está na manutenção da vida da mulher vítima de violência doméstica e se há, a partir da comunicação dos fatos, evidência de perigo iminente à vida, são outras as medidas cautelares cabíveis a estes casos.
[1] Anuário Brasileiro De Segurança Pública 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. ISSN 1983-7364.
[2] SEGATO, Rita Laura. Las estructuras elementares de la violencia. Ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Bernal, Universidad de Quilmes, 2003.
[3] CALAMANDREI, Piero. Introduzioni allo studio sistemático dei provvedimenti cautelare. Padova: Cedam, 1936. p. 19.
[4] GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Og (coord.). Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas: comentários à Lei 12.403, de 04.05.2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
[5] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 17.
[6] Pacelli, Eugênio. Curso de Processo Penal – 23. Ed. – São Paulo: Atlas, 2019. fls. 53.