Por Thainá Carício
Em 2019, no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), se colocou em pauta a discussão acerca da possibilidade, ou não, de haver o compartilhamento de provas entre a Receita Federal do Brasil, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF/UIF), e os órgãos de persecução penal.
À época, por ocasião do julgamento do RE 1.055.941/SP, em sede de repercussão geral, a Corte Suprema firmou orientação no sentido de ser possível o “compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário” (Tema 990).
Da leitura restrita apenas à redação do tema fixado, seria possível compreender que os órgãos de persecução penal – notadamente, o Ministério Público e a Polícia Judiciária – estariam autorizados a requisitar informações, a qualquer tempo e modo, aos órgãos de inteligência financeira.
No entanto, uma análise mais atenta do acórdão, em verdade, indica que a conclusão compreendida no julgado é no sentido de que a autorização somente existe quando, ao analisar informações sob sua cautela, os órgãos de inteligência verificam a existência de possível ilícito e, de ofício, realizam o encaminhamento ao Ministério Público ou à Polícia Judiciária.
Para a Receita Federal, isso significa que, por ocasião do encerramento do Procedimento Administrativo Fiscal (PAF), se verificados indícios de ilícito penal, poderá o órgão encaminhar a denominada “Representação Fiscal para Fins Penais” ao Ministério Público, que, se entender pertinente, dará início à persecução criminal. Nesta hipótese, em consonância à tese de repercussão geral firmada, não seria possível falar em qualquer violação ao sigilo garantido constitucionalmente.
Nesse sentido, é o entendimento da 6ª Turma do STJ, declarado no julgamento do RHC 83.233/SP, de relatoria do Min. Sebastião Reis, conforme trecho do acórdão a seguir:
A possibilidade de a Receita Federal valer-se da representação fiscal para fins penais, a fim de encaminhar, de ofício, os dados coletados no âmbito do procedimento administrativo fiscal, quando identificada a existência de indícios da prática de crime, ao Ministério Público, para fins de persecução criminal, não autoriza o órgão da acusação a requisitar diretamente esses mesmos dados sem autorização judicial.[1]
No tocante ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF/UIF), da mesma forma, caso se verifique eventual indício de crime nas operações monitoradas pelo órgão, se revelará pertinente o envio dos dados, de ofício, aos órgãos de persecução penal, para possível elucidação.
Por outro lado, a possibilidade de se proceder com requisição indiscriminada por parte dos órgãos de investigação, com o escopo de apurar subsídios para a persecução penal, além de representar violação à garantia constitucional de sigilo, revela a vedada prática de fishing expedition (ou pescaria probatória), que, por sua vez, é a “procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem “causa provável”, alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém.” [2]
Aliás, sobre isso, vale mencionar trecho do voto proferido pelo Ministro Dias Toffoli, no RE 1.055.941/SP, que trouxe a vedação à elaboração de Relatório de Inteligência Financeira por “encomenda”, nos seguintes termos:
“não é possível a geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos em relação aos quais não haja alerta emitido de ofício pela unidade de inteligência ou qualquer procedimento investigativo formal estabelecido pelas autoridades competentes” [3]
O tema voltou ao cerne do debate jurídico tendo em vista irresignação do Ministério Público do Estado do Pará com decisão proferida pela Sexta Turma do STJ, no julgamento do RHC n.º 147.707/PA, que reconheceu a ilicitude de Relatórios de Inteligência Financeira produzidos[4], justamente por ter se verificado a ocorrência de requisição direta da Autoridade Policial para o COAF.
Para o Parquet, teria se configurado, no caso, violação ao Tema 990, que, em tese, autorizaria esse compartilhamento de dados, mesmo se tratando de situação em que os RIFs foram encomendados. Foi nesse contexto que o órgão ministerial ajuizou a Reclamação Constitucional n.º 61.944/PA.
No caso concreto, em sede de julgamento monocrático, o Ministro Cristiano Zanin, contrariando o entendimento que vem sendo adotado pelo STJ, proferiu decisão afirmando que as provas derivadas dessa requisição policial deveriam ser tidas como válidas[5].
Diante desse embate, é natural que se questione qual o entendimento que prevalece atualmente na jurisprudência brasileira, mesmo porque a recente interpretação conferida ao Tema 990, pelo Min. Cristiano Zanin, diverge daquela que se consolidou nos Tribunais.
É necessário, pois, esclarecer que a antagonização de posicionamento sobre a questão, entre o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, até o presente momento, se revela apenas aparente. Isso porque a decisão proferida por um único Ministro – neste caso, o Min. Cristiano Zanin – não tem o condão de representar o entendimento da maioria colegiada.
Nessa perspectiva, não existem dúvidas de que permanece, atualmente, na jurisprudência nacional, o posicionamento no sentido de se configurarem ilegais as provas obtidas por meio de requisição direta dos órgãos de persecução penal aos órgãos de inteligência financeira.
Não obstante, há de se registrar que a Reclamação Constitucional se encontra pendente de análise de Agravo Regimental, oportunidade em que se trará uma melhor definição sobre o tema a partir de decisão colegiada da Corte Suprema.
Por fim, necessário registrar que a adoção do entendimento atual, aliás, representa verdadeira garantia dos ditames constitucionais[6], uma vez que as ferramentas de combate ao crime, embora, sem dúvidas, se revelem essenciais, devem respeitar o arcabouço legal, sob pena de grave violação ao Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
(1) RHC 83.233/SP. Rel. Min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 19/04/2017, DJE 15/03/2022, fl. 2. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201700833385&dt_publicacao=15/03/2022>. Acesso em 22 jan. 2024.
(2) MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos e MCDa-C, 1ª ed. Florianópolis: Emais, 2021, p. 389-390.
(3) RE 1.055.941/SP. Rel. Min. DIAS TOFFOLI, TRIBUNAL PLENO, julgado em 04/12/2019, DJe 06/10/2020, fl. 125. Disponível em: < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755364496>. Acesso em 22 jan. 2024.
(4) RHC 147.707/PA. Rel. Min. ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 15/08/2023, DJE 24/08/2023. Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202101529044&dt_publicacao=24/08/2023>. Acesso em 22 jan. 2024.
(5) Rcl 61.944/PA. Rel. Min. CRISTIANO ZANIN, julgado em 23/11/2023, DJE 24/11/2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/11/RCL-61944-51-decisao_monocratica_decisao_final.pdf. Acesso em 22 jan. 2024.
(6) BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016]. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 22 jan. 2024.
[1] RHC 83.233/SP. Rel. Min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 19/04/2017, DJE 15/03/2022, fl. 2. Disponível em: <https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201700833385&dt_publicacao=15/03/2022>. Acesso em 22 jan. 2024.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos e MCDa-C, 1ª ed. Florianópolis: Emais, 2021, p. 389-390.
[3] RE 1.055.941/SP. Rel. Min. DIAS TOFFOLI, TRIBUNAL PLENO, julgado em 04/12/2019, DJe 06/10/2020, fl. 125. Disponível em: < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755364496>. Acesso em 22 jan. 2024.
[4] RHC 147.707/PA. Rel. Min. ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 15/08/2023, DJE 24/08/2023. Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202101529044&dt_publicacao=24/08/2023>. Acesso em 22 jan. 2024.
[5] Rcl 61.944/PA. Rel. Min. CRISTIANO ZANIN, julgado em 23/11/2023, DJE 24/11/2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/11/RCL-61944-51-decisao_monocratica_decisao_final.pdf. Acesso em 22 jan. 2024.
[6] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016]. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 22 jan. 2024.