Por Alvaro Orione Souza e Flávia Sant’Anna Benites
O Fundo de Transporte e Habitação, ou FETHAB, é um tributo estadual mato-grossense que se tornou assunto na mídia, nos últimos meses. Junto com ele, também ganhou os holofotes a Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (APROSOJA), tudo em razão de uma ideia equivocada, mas que se espalhou como um rastilho de pólvora pelas redações dos veículos de imprensa do Estado, de que a APROSOJA supostamente receberia, via Instituto Mato-Grossense do Agronegócio (IAGRO), “recursos públicos” provenientes do FETHAB.
O equívoco consiste em afirmar que O IAGRO, que seria vinculado à APROSOJA, receberia repasses “do FETHAB”, e que esses repasses seriam, portanto, “dinheiro público” que de alguma forma deixaria os cofres do Estado, para ser utilizado pela APROSOJA. Dado o potencial inflamatório dessas ilações, não é de estranhar que o assunto foi objeto de inúmeras manchetes, vindo inclusive, a APROSOJA, a entrar na mira de uma CPI da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso.
Na base de todo o imbróglio que se fez, em torno do FETHAB e da APROSOJA, está a confusão resultante de não se fazer a necessária distinção entre o que seja recurso “do FETHAB” e o que seja recurso arrecadado com o FETHAB. Porque é verdade que, no mesmo ato de pagamento desse tributo estadual, o produtor mato-grossense recolhe, também, os valores da sua contribuição associativa ao Instituto Mato-Grossense do Agronegócio. E que os valores dessas contribuições são, posteriormente, “repassados” ao IAGRO, pela Secretaria de Fazenda.
Mas essa relação está muito longe de caracterizar qualquer repasse de dinheiro público, de qualquer fração dos recursos do FETHAB, do Estado de Mato Grosso para o IAGRO ou para a APROSOJA. A afirmação de que “valores do FETHAB seriam repassados ao IAGRO/APROSOJA” já é, de partida, uma impossibilidade matemática.
Afinal, a própria Lei Estadual 7.263/2000, que rege esse imposto, em seu artigo 14-I, estabelece a destinação que deve ser dada aos recursos do FETHAB:
I – 10% (dez por cento), para realização de projetos e investimentos que tenham a participação da MT PAR;
II – 30% (trinta por cento) para aplicação nas seguintes atividades geridas pela Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística – SINFRA:
a) execução de obras públicas de infraestrutura de transporte;
b) manutenção, conservação, melhoramento e segurança da infraestrutura de transporte do Estado;
c) planejamento, projetos, licenciamento, gerenciamento, auxílio à fiscalização e compra de equipamentos;
III – 60% (sessenta por cento) para aplicação, pelo Tesouro Estadual, preferencialmente em educação, assistência social, saúde e segurança pública.
A Lei do FETHAB, é verdade, institui uma contribuição incidente sobre a tonelada de soja transportada, e que deve ser destinada ao IAGRO (art. 7º, § 1º, inciso II-A). Mas a simples leitura do mencionado artigo 14-I – que dá conta de para onde devem ser destinados 100% dos recursos arrecadados com o FETHAB – já demonstra que os valores levantados em benefício do IAGRO claramente não são “recursos do FETHAB”.
São recursos, isso sim, do próprio IAGRO. Não são dinheiro do Estado de Mato Grosso, fruto de algum tributo que integre as receitas do Poder Público, e que o Estado destinaria para o Instituto Mato-Grossense do Agronegócio. São valores do instituto em questão, que jamais integraram o patrimônio do Estado, para que se possa dizer tratar-se de “repasses de dinheiro público”, do ente estatal para um instituto privado.
O que é permitido, pela Lei do FETHAB, é que a arrecadação das contribuições devidas ao IAGRO – que não são dinheiro público, não são do Estado, mas sim a contribuição associativa de cada produtor ao próprio Instituto – seja feita pela Secretaria de Estado de Fazenda, através de um convênio entre o IAGRO e a SEFAZ (artigo 7º-C-1, § 2º). Reforçando que não existe confusão ou mistura patrimonial, entre os valores que sejam dinheiro do Estado, e aqueles que correspondam à contribuição associativa ao IAGRO, esse mesmo artigo determina que, em havendo tal convênio, o recolhimento dos valores do Instituto será “diretamente à conta do IAGRO”.
E, de fato, existe, hoje, um convênio entre o Instituto Mato-Grossense do Agronegócio e a SEFAZ, o Convênio de Arrecadação 002/2019-SEFAZ/IAGRO. A cláusula segunda desse convênio pactua que a contribuição devida, pelos produtores ao IAGRO, será arrecadada por meio do Sistema de Arrecadação da SEFAZ/MT, que deverá repassar esses valores ao Instituto. A cláusula sexta do convênio, por sua vez, estipula que, pela arrecadação e repasse – de valores que, repita-se, são do IAGRO –, a SEFAZ receberá o percentual de 3,5% do montante arrecadado, a ser descontado no ato do repasse ao Instituto.
Tudo a revelar que os cofres do Estado de Mato Grosso não transferem um centavo sequer de dinheiro público para as contas do IAGRO. A SEFAZ presta, como autorizado pela Lei e mediante convênio oneroso, meramente o serviço de arrecadar esses valores pelo IAGRO, e repassá-los ao Instituto. Tudo documentado e, mais importante, periodicamente tornado público, pela Secretaria de Fazenda.
A título de exemplo, por meio da Portaria nº 035/GSF/SEFAZ/2022, a SEFAZ divulgou que, no mês de janeiro deste ano, por meio do convênio mantido com o IAGRO, a Secretaria repassou ao Instituto o montante de R$ 1.222.794,58, tendo recebido, a título de tarifa, o valor de R$ 44.337,80 [1].
Portanto, quando manchetes midiáticas afirmam que algum partido político “ingressa no TJMT para suspender repasses do Fethab à Aprosoja” [2], o que se omite é que o FETHAB não faz nenhum repasse ao IAGRO, muito menos à APROSOJA. Quando veículos de imprensa destacam que “Iagro recebeu R$ 55 milhões em menos de um ano, aponta Ministério Público” [3], o que precisa ser esclarecido é que nem sequer um centavo, desses 55 milhões de reais, era dinheiro do Estado de Mato Grosso, ou recursos do FETHAB. Tratava-se de valores, desde o princípio, do próprio IAGRO, e por cuja arrecadação, numa conta por alto e com base na alíquota de 3,5% do Convênio 002/2019, a SEFAZ teria, isso sim, recebido quase dois milhões de reais.
Mas, alguém ainda poderia perguntar, por que razão a SEFAZ deveria firmar um convênio por meio do qual se obriga a desempenhar as funções de arrecadação das contribuições de uma associação privada?
Em primeiro lugar, como visto, a SEFAZ não faz isso de graça. Mas, ainda que o convênio com o IAGRO não previsse remuneração pelo serviço de arrecadação e repasse das contribuições do Instituto, é forçoso reconhecer que a Secretaria de Fazenda só se beneficia de desempenhar esse papel de arrecadação.
Afinal, indaga-se, qual o ônus, para a SEFAZ, de arrecadar as contribuições associativas destinadas ao IAGRO? Salvo melhor juízo, toda a estrutura necessária a essa arrecadação já deveria mesmo ser implementada pela Secretaria, para que o Estado arrecadasse o próprio FETHAB. Por outro lado, o ente fazendário ganha, com esse convênio, a otimização da arrecadação do tributo.
Se o IAGRO depende do pagamento do FETHAB para ver recolhidas, concomitantemente, as suas contribuições, o próprio Instituto passa a ser o maior interessado em que os produtores não soneguem o FETHAB – e, portanto, se esforçará sempre para que os seus associados se mantenham em estado de regularidade fiscal, seja promovendo ações de comunicação e mídia, seja alimentando a Secretaria de Fazenda com as informações e dados necessários para a arrecadação, ambas obrigações previstas, para o Instituto, na cláusula quinta do Convênio 002/2019.
Dito isso, o Supremo Tribunal Federal já entendeu, em situação absolutamente análoga à do IAGRO, que os valores porventura arrecadados pelo Poder Público, mas que dizem respeito às contribuições para manutenção de entidades paraestatais de relevante interesse social, não são dinheiro público. No caso, em decisão tomada na Reclamação 43.479/RJ, em agosto de 2021, a 2a Turma do Supremo reafirmou a jurisprudência reiterada dos Tribunais Superiores, no sentido de que as contribuições ao chamado Sistema S (Fecomércio/SESC/SENAC) integram o patrimônio particular dessas entidades privadas, e não são, portanto, bens ou recursos da União – não são dinheiro público.
Naquele caso, o STF julgava se a Justiça Federal era competente para processar os fatos investigados na chamada “Operação Esquema S”, que investigava suposto desvio de recursos das entidades SESC/SENAC, no Rio de Janeiro. O critério analisado naquela oportunidade, para a definição da competência criminal da Justiça Federal, era se o crime havia sido praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União (art. 109, inciso IV, CF).
E o Supremo Tribunal Federal entendeu não ser competente, a Justiça Federal, para processar e julgar crimes envolvendo os recursos do Sistema S, justamente por não haver, nessas instituições, bens ou interesses da União – é dizer, os recursos das entidades do Sistema S não são recursos públicos:
“Contudo, a concreta situação sob exame, que envolve supostos desvios de recursos da Fecomércio/RJ, do SESC/RJ e do SENAC/RJ para a prática de crimes de peculato, estelionato e tráfico de influência, a partir de exigências de vultosos valores por parte dos advogados denunciados, sob o pretexto de obtenção de vitórias jurídicas perante o STJ e o TCU, não se amolda a essas hipóteses.
Isso porque, as entidades acima mencionadas são pessoas jurídicas de direito privado dotadas de recursos próprios, definitivamente incorporados ao seu patrimônio, ainda que com base em contribuições parafiscais do sistema S (SESC, SENAC, SEBRAE) pagas pelos contribuintes e repassadas imediatamente pela Receita Federal às referidas entidades.” (Rcl 43479, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 10/08/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-215 DIVULG 28-10-2021 PUBLIC 03-11-2021)
É preciso ressaltar quão perfeita é a analogia entre as contribuições para o Sistema S, analisadas no precedente do STF, e as contribuições para o IAGRO, arrecadadas juntamente com o FETHAB. Na realidade, quer parecer que a legislação estadual sobre a matéria buscou, justamente, espelhar as Leis Federais que regem as contribuições do Sistema S.
O artigo 3o da Lei Federal 11.457/2007 determina que cabe à Receita Federal do Brasil a arrecadação das contribuições aos órgãos do Sistema S – assim como a Lei do FETHAB, no âmbito estadual, permite à SEFAZ a arrecadação das contribuições ao IAGRO. Até a remuneração da Receita Federal, por essa atividade de arrecadação, é fixada pela Lei 11.457/2007 (art. 3o, § 1o) nos mesmos 3,5% do montante arrecadado – exatamente a remuneração que o Convênio 002/2019, entre a SEFAZ e o IAGRO, estabelece como retribuição à Secretaria de Fazenda, por desempenhar a função arrecadatória das contribuições ao Instituto.
Por isso, é em tudo aplicável, à polêmica envolvendo o FETHAB e o IAGRO ou a APROSOJA, a lógica jurídica adotada pelo Supremo Tribunal Federal, na mencionada Reclamação 43.479/RJ – a despeito de serem contribuições arrecadadas pelos órgãos fazendários, do Estado ou da União, nem as contribuições ao IAGRO, nem as contribuições ao Sistema S se constituem em “recursos públicos”.
Diga-se, nem se trata, esta, de uma decisão isolada do Supremo, que já havia editado, inclusive, a Súmula 516, com o teor: “O Serviço Social da Indústria – SESI – está sujeito à jurisdição da Justiça Estadual” – lembrando que essa competência se firma na Justiça Estadual justamente pela ausência de patrimônio público nessas instituições.
De modo que é um rematado equívoco, afirmar que o IAGRO, e através dele a APROSOJA, receberia “recursos públicos” provenientes do FETHAB. É bastante preocupante observar a leviandade com que representantes da imprensa, e até dos poderes constituídos no Estado de Mato Grosso, vêm propalando essa falácia, inclusive arrastando a APROSOJA para o palco de uma Comissão Parlamentar de Inquérito “da Sonegação”, tudo enquanto repetem que haveria “mau uso de recursos públicos” no âmbito da Associação [4].
Os recursos do IAGRO e da APROSOJA não são públicos. Os repasses da Secretaria de Fazenda, ao Instituto Mato-Grossense do Agronegócio não são recursos do FETHAB, mas sim as contribuições ao IAGRO, dos seus próprios associados, os produtores rurais. E nem desempenha, a SEFAZ, essa atividade de arrecadação e repasse de forma gratuita.
Muito do que se tem afirmado, a respeito do IAGRO, da APROSOJA e da sua relação com o FETHAB não passa de desinformação, no que parece ser uma campanha de demonização do setor produtivo agroexportador, uma tentativa de voltar a opinião pública contra o ramo da atividade econômica que mais responde pelo desenvolvimento do Estado.
NOTAS
[1] O que é ligeiramente superior aos 3,5% previstos no Convênio 002/2019, mas a própria portaria em questão registra que eventuais diferenças (e ressalte-se, nesse caso se trata de uma diferença em favor da Fazenda) são compensadas no repasse subsequente.
[2] Matéria de 28/01/2022, disponível em: https://www.rdnews.com.br/judiciario/conteudos/154946.
[3] Matéria de 26/09/2021, disponível em: https://www.olharjuridico.com.br/noticias/exibir.asp?id=47308¬icia=iagro-recebeu-r-55-milhoes-em-menos-de-um-ano-aponta-ministerio-publico.
[4] “Wilson aponta ‘farra na sonegação fiscal’ em MT e garanta relatório final de CPI em maio”, matéria de 04/03/2022, disponível em: https://www.obomdanoticia.com.br/politica/wilson-apontafarra-na-sonegacao-fiscal-em-mt-e-garante-relatorio-final-de-cpi-em-maio/160849.
Alvaro Orione Souza, sócio do escritório Antun Advogados Associados, especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, mestrando em Processo Penal pela PUC-SP.
Flávia Sant’Anna Benites, sócia do escritório Ernesto Borges Advogados, atua no âmbito contencioso e consultivo, abrangendo a elaboração de opiniões legais e pareceres, análises estratégicas (Regimes Especiais, Termo de Acordo), panoramas dos ativos e passivos tributários, restituição de indébito tributário, defesas nas autuações fiscais e demais questões tributárias. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito “Instituição Toledo de Ensino de Presidente Prudente – Estado de São Paulo”. Especialização em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Pós-graduada em Direito Público pela Escola de Direito do Ministério Público.
Publicado no Jornal Jurid.