Por Thainá Carício
Não raras as vezes, em crimes societários, tributários, ambientais ou licitatórios, tem-se visto o Ministério Público oferecer denúncia por crimes supostamente cometidos no âmbito da empresa, imputando conduta criminosa, especialmente, aos sócios, ou àqueles que exercem cargo de gerência, administração ou direção da pessoa jurídica.
No entanto, preocupa o fato de que, em muitos casos, o MP não consegue atribuir, na denúncia, a conduta criminosa ao sócio/gerente/diretor/administrador. Em outras palavras, o Ministério Público oferece a peça acusatória contra eles, sem efetivamente explicitar qual a participação pessoal e concreta de cada um na suposta empreitada criminosa, a forma como cada denunciado contribuiu para o resultado ilícito.
Essa necessária relação de causalidade, que a Lei exige que seja apontada entre a conduta individual de cada denunciado, e a consecução do suposto crime, nem sempre é tão simples de se fazer, dada a complexidade das estruturas empresariais, o que acaba resultando no oferecimento de denúncias em desfavor de toda a cúpula de direção da empresa, sem nenhuma distinção.
A ideia, muitas vezes confessada pelos próprios órgãos de acusação, é de que todos deveriam ser denunciados para que, somente durante a instrução processual, seja delimitada a participação dos verdadeiros responsáveis pelo ilícito. Esse, no entanto, é um expediente ilegal – a complexidade na delimitação da autoria, no contexto empresarial, não exime o Ministério Público do seu dever de investigar, e efetivamente individualizar as condutas criminosas e os seus reais autores, antes do oferecimento da denúncia.
É importante que se diga que essa complexidade das organizações empresariais acaba por conferir um caráter de descentralização às atividades realizadas. Com base no princípio da confiança, há uma verdadeira distribuição de tarefas, fazendo com que os ocupantes de cargos do alto escalão nem sempre estejam a par de absolutamente todas as atividades realizadas por outros funcionários. Veja-se que tal fato não resulta de nenhum descuido, mas, apenas, de uma melhor forma de organização. [1]
Aliás, não seria crível exigir, por exemplo, que o diretor de uma empresa com centenas de funcionários tivesse controle de todos os atos praticados, em todos os minutos do dia, por cada funcionário, nos mais diversos setores da organização. Afinal de contas, impor tal obrigação significaria, em última análise, demandar atributos de onisciência e onipresença. Em outras palavras, seria admitir que os dirigentes pudessem ser objetivamente responsabilizados por fatos ocorridos na empresa.
Se, no entanto, essa espécie de responsabilidade objetiva pode até ter lugar, a depender do caso, em outros ramos do Direito, a mesma não é admitida, no Direito Penal.
No ordenamento penal pátrio, somente é possível imputar uma conduta criminosa ao indivíduo quando comprovado o nexo de causalidade entre sua ação/omissão e o resultado do crime, bem como o seu dolo ou culpa ao praticá-lo. Ou seja, não se mostra admissível a instauração de ação penal contra alguém sem explicitar qual sua contribuição para aquele delito, ainda que apenas a título de culpa.
Um Estado Democrático de Direito não coabita com responsabilidade penal objetiva.
À luz dos princípios constitucionais, especialmente o da presunção de inocência e da ampla defesa, é necessário que a acusação empreenda todos os esforços para garantir que a denúncia oferecida demonstre o nexo causal entre a posição ocupada pelo agente e a prática delitiva a ele atribuída. Afinal, nunca é demais lembrar que o ônus de comprovar a prática criminosa, com todas as suas circunstâncias, recai integralmente sobre o Ministério Público.
É preciso que se diga também que o mero “deveria saber” não é suficiente para o prosseguimento de uma ação penal, porque, de igual modo, acaba por incidir em responsabilização objetiva. É necessário que o órgão ministerial demonstre a participação efetiva naquele crime ou que o acusado tinha poder de decisão/domínio sobre aquele fato específico.
Portanto, é necessário que a narrativa acusatória apresente elementos mínimos indiciários que preservem o direito do acusado de conhecer o conteúdo da imputação existente contra si, sob pena de malferir os direitos à ampla defesa e ao contraditório. A mera atribuição de uma qualidade, como por exemplo, ser sócio de uma empresa, jamais pode servir para amparar uma imputação delitiva.
A título de exemplo sobre o tema, na Ação Penal 898/SC, o Supremo Tribunal Federal, por meio da segunda Turma, assim decidiu: “Imputar a alguém uma conduta penal tão somente pelo fato de ocupar determinado cargo significa, na prática, adotar a responsabilização objetiva na esfera penal. A contrário. A responsabilização penal nos crimes comissivos impõe a regra de certeza acerca da conduta criminosa praticada, não podendo ser suprida por ilações, por mais coerentes ou lógicas que se apresentem, decorrentes da condição exclusiva de ser prefeito.” [2]
Um caso interessante, que teve grande repercussão midiática, é o da tentativa de responsabilização do Presidente e Administrador do Parque Hopi Hari, no caso da morte de uma jovem de 12 (doze) anos, em um brinquedo do complexo. Uma das cadeiras da atração “La Tour Eiffel” teve sua trava aberta e a garota despencou de uma altura de 25 (vinte e cinco) metros.
A defesa impetrou Habeas Corpus, perante o Egrégio STF, com vistas a buscar o trancamento da ação penal, uma vez que não teria sido demonstrado qual o nexo causal entre as condutas – ação ou omissão – do acusado e a morte da jovem.
O Ministro Celso de Mello, relator do HC, entendeu pela “inviabilidade de instaurar-se persecução penal contra alguém pelo fato de ostentar a condição formal de “Chief Executive Officer” (CEO)”. Em suas razões de decidir pontuou, justamente, que não existe responsabilidade penal objetiva no sistema jurídico brasileiro. [3]
Além disso, o Ministro afirmou em seu voto que “o princípio da confiança, tratando-se de atividade em que haja divisão de encargos ou de atribuições, atua como fator de limitação do dever concreto de cuidado nos crimes culposos.” Entendeu, portanto, que o acusado, então presidente do parque, confiava que os funcionários cumpririam todas as regras previamente estabelecidas e seguiriam as instruções a eles passadas, seguindo exatamente a ideia do já citado “princípio da confiança”.
Recentemente, na mesma esteira, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso em Habeas Corpus n.º 148.463, para trancar ação penal movida em desfavor de uma empresária, por entender que ser sócia e esposa de acusado de crime, por si só, não autorizaria a persecução criminal. [4]
Na hipótese, o marido da acusada respondia à ação penal por crime de fraude em licitações, sendo ela sócia e administradora da empresa envolvida. O entendimento foi de que não deve haver responsabilização penal, nem mesmo da cônjuge do suposto autor do fato, que não participa efetivamente da prática criminosa, mas apenas figura como sócia da empresa.
De acordo com o Ministro João Otávio de Noronha, “as circunstâncias objetivas de alguém ser sócio e exercer direção ou administração de empresa (envolvida em atividade criminosa) não é suficiente para autorizar qualquer presunção de culpa”.
Dessa forma, é possível notar que a jurisprudência tem seguido a linha de posicionamento de que só deve haver responsabilização, na seara penal, quando demonstrado o liame subjetivo entre a conduta do acusado e o fato tido como criminoso. Ou seja, repudia-se qualquer possibilidade de responsabilidade penal objetiva.
É, portanto, requisito essencial da peça acusatória, nos crimes societários ou que envolvem participação de pessoa jurídica, a descrição da conduta típica praticada pelo sócio, dirigente ou diretor, não sendo possível presumir sua responsabilidade penal com base no cargo eventualmente ocupado.
[1] ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia).
[2] STF, AP 898/SC, Relatoria Ministro Teori Zavascki, Segunda Turma, J: 12.04.2016;
[3] STF, RHC 138.637/SP, Relatoria Ministro Celso de Mello, J: 22.10.2020;
[4] STJ, RHC 148.463/RJ, Relatoria Ministro Joel Ilan Parcionick, J: 26.09.2022.