Por Thainá Carício
Recentemente, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de maneira bastante acertada, proferiu decisão[1] declarando inadmissíveis provas digitais, obtidas a partir de busca e apreensão, com arquivos corrompidos e inacessíveis.
No caso em questão, o Ministério Público do Estado de São Paulo ofereceu denúncia em desfavor de empresas farmacêuticas, em razão de suposta fraude fiscal. No entanto, a exordial acusatória não foi acompanhada dos HDs de origem e do “HD do fisco” – dado haver arquivo corrompido, sem possibilidade de acesso –, mas tão somente de arquivos disponibilizados em nuvem pelo próprio MP, o que, de acordo com a decisão, compromete a sua confiabilidade e suscita dúvidas quanto à sua integralidade.
A decisão ora mencionada joga luz sobre o tema da cadeia de custódia em provas digitais, demonstrando a crescente preocupação do judiciário brasileiro com a integridade das evidências digitais no âmbito do processo penal.
A cadeia de custódia é, sem dúvidas, um elemento indispensável para garantir a preservação da integridade e autenticidade das provas, sejam elas “físicas” ou digitais. Isso porque trata-se de um conjunto de procedimentos que visam assegurar a rastreabilidade de uma prova desde o momento de sua coleta até a apresentação em juízo.
E é exatamente essa rastreabilidade que possibilita uma análise quanto à integridade da prova coletada, conforme lecionam Vinicius Vasconcellos e Lia Andrade de Souza em artigo sobre o tema:
Portanto, a não rastreabilidade de uma prova gera dúvidas razoáveis acerca de sua idoneidade, pois se torna praticamente impossível identificar a existência de eventual vínculo entre uma prova aparentemente lícita e outra, anterior, ilícita (PRADO, 2014b, p.79). Além disso, a falta de acesso à integralidade dos elementos probatórios colhidos inviabiliza o exercício efetivo do contraditório e do controle das afirmações apontadas por tais informações.
Nesse sentido, a manutenção da cadeia de custódia é de suma importância, pois é ela quem garante ao réu que a prova trazida pela acusação é a mesma que foi obtida na investigação (“mesmidade”), em observância aos procedimentos legais e sem alterações (“desconfiança”). Se assim não o for, haverá violação ao devido processo legal e ao contraditório (2020, p. 35).
No Brasil, muito embora a legislação processual penal não tenha se preocupado em trazer diretrizes claras sobre os procedimentos de coleta, preservação, transporte, análise e apresentação de provas digitais, a norma ABNT 27037 cuidou de estabelecer tais regras.
E é por essa razão que, no contexto de provas digitais no país, a ABNT 27037 é de suma importância, uma vez que define as “Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital”, indicando os preceitos operacionais destinados a assegurar que os dados cibernéticos não sejam alterados, corrompidos ou manipulados durante sua coleta e posterior análise.
A base técnica da norma tem por escopo garantir que haja um adequado manuseio das provas digitais, elencando as seguintes etapas fundamentais para uma cadeia de custódia mais segura: identificação da prova; documentação da coleta; preservação da integridade; controle de acesso; transporte da prova; análise forense; e relatórios de análise e apresentação.
No caso julgado pela Quinta Turma, por exemplo, não houve respeito à etapa de preservação da integridade do material coletado, porque, de acordo com a decisão:
“há um fato incontroverso: Ministério Público, juízo singular e acórdão recorrido reconhecem que parte do material apreendido é absolutamente inacessível, porque seus arquivos foram corrompidos por algum tipo de erro, que se acredita ter acontecido no momento da extração dos dados na busca e apreensão. O principal da causa está, dessarte, na ofensa à integralidade da prova”
É por isso que se revela necessário uma cautela na coleta da prova digital, buscando compreender quais os riscos existentes e qual material será utilizado naquele momento, a fim que a evidência não seja corrompida.
Dessa forma, muito embora reconhecendo os desafios práticos da implementação da ABNT 27037, especialmente diante da necessidade de capacitação contínua dos profissionais envolvidos na operação de coleta e análise de provas digitais e da evolução tecnológica sucessiva, é importante observar essa norma sob a perspectiva de uma verdadeira diretriz de manuseio, buscando adotar todos os seus protocolos.
Inclusive, admitindo a importância da NBR 27037, o Ministro Joel Ilan Parcionik, também da Quinta Turma do STJ, proferiu voto, no HC 820.054, apontando que “o referido documento técnico, embora não dotado de força obrigatória de lei, constitui relevante guia a ser observado pelos atores da persecução penal, a fim de assegurar, tanto quanto possível, a autenticidade da prova digital”.
Portanto, é possível notar a crescente – e devida – preocupação com a segurança e transparência das provas digitais utilizadas no processo penal, no sentido de buscar sempre resguardar a integridade da evidência apresentada.
É nesse sentido que, para que a anulação de processos, em razão da quebra de cadeia de custódia, não se torne uma realidade constante, como ocorreu nos dois casos mencionados ao longo do presente artigo, a observação das regras adotadas pela norma ABNT 27037 parece ser um bom caminho.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo. A Cadeia de Custódia da Prova Digital. In: OSNA, Gustavo et. Al. Direito Probatório. Londrina: Toth, 2023, p. 179.
PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
SOUZA, Lia Andrade de; VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. A cadeia de custódia da prova obtida por meio de interceptações telefônicas e telemáticas: meios de proteção e consequências da violação. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, v.65, n.2, p. 31-48, ago. 2020. ISSN 2236-7284. Disponível em: < https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/68577/41507 >. Acesso em 13 de janeiro de 2025.
[1] AgRg no RHC n. 184.003/SP, relatora Ministra Daniela Teixeira, relator para acórdão Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 10/12/2024, DJe de 26/12/2024.