Fintechs e Lavagem de Dinheiro: A Nova Fronteira do Crime Financeiro
16/09/2025Fintechs e Lavagem de Dinheiro: A Nova Fronteira do Crime Financeiro
16/09/2025
Por Manuela Abreu
No universo do mercado financeiro, é muito comum diversas pessoas se sentirem um tanto perdidas ao olhar para um extrato de investimentos, aquela profusão de códigos, siglas e números que, para a maioria, se assemelha quase a uma língua estrangeira. Para quem investe e desconhece tecnicamente essa área, a confiança no profissional que irá gerenciar a carteira é fundamental. No entanto, tem crescido cada vez mais, inclusive pelo aumento de agentes autônomos de investimentos (AAIs), uma prática predatória nesse universo, chamado churning, que pode gerar prejuízos significativos ao cliente.
A palavra vem do inglês to churn, que significa agitar, sacudir. No mercado, a conduta é exatamente essa: movimentar a carteira do cliente, não para buscar lucros ou evitar perdas, mas com o propósito deliberado de gerar mais taxas de corretagem para o intermediário, enquanto o investidor é mantido em erro. Para ser didática, basta pensar no mecânico desonesto que, a cada revisão, insiste em trocar peças perfeitamente funcionais do seu carro e a conta, ao final, vem com inúmeros serviços que serviram apenas para engordar o bolso da oficina. O assessor que pratica o churning é esse mecânico. Ele “gira” a carteira do cliente e, a cada transação, uma fração do patrimônio do investidor é corroída pelas taxas.
Essa conduta, por muito tempo tratada como um “desvio ético”, encontrou barreiras regulatórias firmes na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mas a sombra projetada por essa prática é ainda mais densa e tem, cada vez mais, alcançando a esfera mais severa do nosso ordenamento jurídico: o Direito Penal. A transição da esfera administrativa para a criminal acontece quando a conduta se amolda a um dos crimes contra o sistema financeiro, previstos na Lei nº 7.492/86. A prática de churning tem sido amoldada, pelas autoridades, ao artigo 6º, que criminaliza a conduta de “induzir ou manter em erro (…) investidor (…), sonegando-lhe informação ou prestando-a falsamente“.
Nesses casos, a lógica acusatória é que, ao movimentar excessivamente a carteira, o profissional mantém o investidor no erro de que aquela é uma estratégia benéfica. Para configuração do tipo penal descrito, conforme entendimento na jurisprudência brasileira[1], basta a prestação de informação falsa ou omissão de informação verdadeira a respeito de operação ou situação financeira, sem a exigência de ocorrência de prejuízo efetivo (delito de mera conduta). No caso, a norma visa a tutelar, primordialmente, a credibilidade do Sistema Financeiro Nacional e a confiança dos investidores e, secundariamente, o patrimônio do investidor contra potenciais prejuízos.
É crucial notar, contudo, que essa tipificação esbarra em profundas controvérsias doutrinárias, pois a subsunção ao artigo 6º pode representar uma violação ao princípio da legalidade estrita, que veda a analogia in malam partem (para prejudicar o réu). Isso ocorre porque, em muitos casos de churning, as informações prestadas ao cliente — os extratos, as notas de corretagem — são, em si, perfeitamente verdadeiras. O dano não decorre da falsidade do dado, mas, em muitos casos, da inaptidão técnica do investidor em compreender que aquela sucessão de operações verdadeiras constitui uma prática predatória. O profissional, nesse caso, não se beneficia da mentira, mas sim da ignorância alheia sobre dados corretos, portanto aplicar o artigo 6º a essa conduta seria alargar o tipo penal para além do que o legislador descreveu.
Ainda para quem entenda que a aplicação do art. 6º não esbarraria nesse problema de legalidade estrita, a comprovação da intenção específica de fraudar — o dolo — precisa ser o elemento central para a transposição do caso à esfera criminal. Com isso em mente, para dar concretude a essa intenção, torna-se indispensável buscar um norte nos critérios que a própria esfera administrativa, por meio da CVM, já consolidou para identificar a prática do churning. Afinal, se a conduta do agente preenche os requisitos objetivos que definem a fraude administrativa, temos ali um forte indício do dolo necessário para a esfera penal.
A jurisprudência da CVM, por exemplo, consolidou a necessidade de um tripé probatório para a configuração do ilícito: (i) controle sobre as operações: a prova de que o profissional, e não o cliente, era quem de fato tomava as decisões de investimento; (ii) giro excessivo da carteira: uma movimentação incompatível com os objetivos, o perfil de risco e a estratégia declarada do cliente e (iii) a intenção do agente: o elemento subjetivo, a comprovação de que o propósito das operações era gerar ganhos com corretagem, e não beneficiar o investidor.[2]
Além da tipificação do artigo 6º, há também um cenário mais grave quando a fraude se torna o próprio método de trabalho, podendo, em tese, configurar o crime de gestão fraudulenta, previsto no art. 4º, caput, da mesma Lei nº 7.492/86. Aqui, a lei não pune um ato, mas sim um padrão de conduta. Ou seja, se o churning é o ato do mecânico que troca uma peça, a gestão fraudulenta é o dono da oficina que institui como política enganar todos os clientes. A fraude passa a ser o modus operandi da gestão dos recursos, revelando um grau de reprovabilidade muito maior.
Ocorre que, não raro, a acusação se desloca da gestão fraudulenta para a figura da gestão temerária (art. 4º, parágrafo único), um terreno de maior controvérsia, especialmente quando o dolo direto é de difícil comprovação. A gestão temerária pune o risco proibido e a configuração deste crime temerário não se satisfaz com o mero prejuízo ou a incompetência gerencial, mas com a constatação de uma conduta que ultrapassa os limites do risco aceitável.
A distinção crucial para a defesa reside na elementar típica “temerária”, sendo o risco inerente à atividade de gestão no mercado financeiro, o Direito Penal só pode punir o risco que é proibido ou seja, a temeridade se configura pela criação ou incremento de um risco não permitido. Nesses casos, é necessária a demonstração de que a gestão, ainda que deficitária, não configura uma ilegalidade penal.
Para tal, deve-se atentar a três pilares, fundamentais na dogmática do Direito Penal Econômico: a primeira é a violação qualificada do dever, pois não é qualquer descumprimento regulatório que configura o crime. O entendimento consolidado, alinhado no que chamamos de teoria da imputação objetiva, exige uma violação qualificada do dever de diligência. Ou seja, a conduta deve ser de tamanha imprudência manifesta que se revele, ex ante (no momento da ação), insustentável ou incompreensível do ponto de vista econômico. O mero ato de gestão irregular é insuficiente para alcançar a estatura do ilícito penal.
O segundo, é o juízo da Business Judgment Rule. O gestor tem o direito de tomar decisões arriscadas dentro da sua competência. A acusação não pode fazer uma revisão ex post (após o prejuízo) do mérito de uma decisão que, embora tenha gerado perdas, foi tomada em estrita observância às políticas de risco e de investimento previamente aprovadas pela instituição e pelo órgão regulador. Se o gestor agiu dentro desses limites e com a diligência esperada, alinhada ao cliente, a conduta se insere no risco permitido e não pode ser criminalizada.
E, por fim, a aptidão para o dano relevante, embora o tipo penal de gestão temerária seja um crime de perigo (que não exige o resultado danoso), o comportamento deve ter aptidão para ocasionar um resultado sensivelmente relevante. Nesse sentido, é importante observar o princípio da ofensividade, que exige que, para haver crime, deve haver uma lesão ou um perigo concreto de lesão a um bem jurídico. Não se pode punir criminalmente uma conduta apenas por sua “imoralidade” ou “desvio ético”.
Por essa razão, a doutrina penal mais moderna defende a necessidade de um quarto elemento para a caracterização do churning penalmente relevante: a comprovação do dano patrimonial efetivo e do custo excessivo ao investidor. Ou seja, não basta provar o giro, o controle e a intenção; é preciso demonstrar que essa conduta resultou em um prejuízo concreto e injustificado ao cliente. Sem um resultado lesivo, a conduta pode ser um ilícito administrativo, mas não alcançaria a estatura de um crime, sob pena de banalizarmos a mais severa das intervenções do Estado.
Ademais, é fundamental também distinguir a responsabilidade do executor da de seus superiores. Não basta ser sócio de uma empresa onde uma fraude ocorreu para ser, automaticamente, considerado um gestor fraudulento. O Direito Penal brasileiro não admite a responsabilidade objetiva, então para que a acusação alcance a sócia, por exemplo, é seu ônus provar que ela sabia e participou do esquema (dolo direto) ou que, ciente de fortes indícios, escolheu deliberadamente ignorá-los para se beneficiar (dolo eventual). Portanto, a mera negligência na supervisão pode gerar sanções cíveis ou administrativas, mas jamais uma condenação criminal.
Diante do cenário complexo do churning, esta análise partiu da premissa de que a prática, embora nascida como um desvio ético-administrativo, força a aplicação de tipos penais contra o Sistema Financeiro Nacional. Passados quase quarenta anos da vigência da Lei nº 7.492/86, a ausência de um tipo penal específico para o churning impõe um desafio de adequação que, conforme a melhor dogmática penal, exige uma interpretação restritiva dos seus artigos, notadamente o que trata da Gestão Temerária.
Nessa busca por contornos mais precisos, a discussão em torno da Gestão Temerária (art. 4º, parágrafo único) assume papel central, uma vez que o tipo penal visa à proteção do patrimônio das instituições financeiras e dos investidores. A jurisprudência tem evoluído no sentido de exigir, como pressuposto da temeridade, uma violação qualificada do marco regulatório aplicável aos profissionais do setor. Assim, para que o churning se enquadre na esfera criminal sob a figura da Gestão Temerária, é indispensável demonstrar não apenas a inobservância de norma extrapenal, mas uma infração grave de dever, dotada de potencial para afetar de forma significativa o patrimônio do cliente ou da instituição.
A solução passa, pois, por um sistema de Justiça altamente especializado, capaz de utilizar esses critérios hermenêuticos para evitar a banalização da Lei nº 7.492/86 e garantir que a pesada mão do Direito Penal recaia, com precisão, apenas sobre o dolo fraudulento ou a temeridade manifesta, preservando a segurança jurídica no mercado e a justiça para o profissional investigado.
Notas de Rodapé
[1] https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=25109
[2] PAS CVM nº SP2012/480, julgado em 06.10.2015, Rel. Dir. Roberto Tadeu Antunes Fernandes; PAS CVM nº RJ2014/12921, julgado em 10.02.2017, Rel. Dir. Pablo Renteria; PAS CVM nº 11/2013, julgado em 30.01.2018, Rel. Dir. Gustavo Gonzalez; PAS CVM nº RJ2015/6143, julgado em 24.04.2018, Rel. Dir. Gustavo Gonzalez; PAS CVM nº 22/2013, julgado em 18.09.2018, Rel. Dir. Gustavo Gonzalez; PAS CVM nº SP2014/0465, julgado em 06.11.2018, Rel. Dir. Gustavo Gonzalez.