Por Alvaro Souza
O Supremo deu início ao julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade que questionam a criação do Juiz das Garantias, no Brasil. Trata-se das ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305, reunidas sob a relatoria do Ministro Luiz Fux.
Em dezembro de 2019, a Lei 13.964/2019 previu a criação, no Processo Penal Brasileiro, da separação entre o Juiz que atua na fase de inquérito policial – decidindo medidas cautelares, preservando os direitos fundamentais do acusado, recebendo a denúncia – o qual receberia o nome de Juiz das Garantias, do Juiz que preside a ação penal propriamente dita, conduzindo a produção da prova em contraditório e, ao final, proferindo a sentença. Trata-se de um instituto há muito tempo reclamado pelos estudiosos do Processo Penal, importantíssimo para a otimização da garantia fundamental a um julgamento imparcial, na medida em que mitiga a possibilidade de contaminação do juiz que decidirá a culpa ou inocência do acusado, pelo conhecimento que teve do caso, ou pelos juízos provisórios que eventualmente formou, na fase de investigação.
O Juiz das Garantias, no entanto, jamais chegou a entrar em vigor, visto que o Ministro Fux concedeu uma liminar, nas ADIs em questão, para suspender a sua implementação indefinidamente. Pois, no último dia 28/06, com a conclusão do seu voto, o Ministro Relator finalmente deu início ao julgamento do mérito dessas ações de inconstitucionalidade, votando contra a implantação do Juiz das Garantias, da forma como previsto na Lei 13.964/2019.
Em que pese o reconhecimento de que a posição do Ministro Fux não é isolada, afinal, o Juiz das Garantias encontra resistência em amplos setores da própria magistratura, infelizmente não é possível concordar com os fundamentos declinados, pelo e. Relator.
De início, chama a atenção que o Ministro afirma a inconstitucionalidade do instituto do Juiz das Garantias, mas desenvolve grande parte da sua argumentação confrontando a figura não com a Constituição, mas com dispositivos do Código de Processo Penal. Assim, ele afirma, por exemplo, que o art. 3º-A do CPP, introduzido pela Lei 13.964/2019, ao vedar a iniciativa probatória do juiz na fase de inquérito, conflitaria com o art. 156 do mesmo CPP, que autorizaria ao magistrado ordenar a produção de prova antecipada, antes mesmo de iniciada a ação penal. Ou que a exclusão dos autos do inquérito do caderno processual que formará o processo, prevista com a implementação do Juiz das Garantias, contrariaria o art. 155 do CPP, que permitiria ao magistrado fundamentar a sentença também com base na investigação preliminar.
Para o e. Relator, não tendo, a Lei 13.964/2019, revogado expressamente esses outros artigos do Código de Processo Penal, as previsões do Juiz das Garantias provocariam um cenário de pandemônio processual, dando margem a uma “fábrica” de arguições de nulidade. Ocorre que o juízo quanto à constitucionalidade ou não de determinada Lei – que é para o que serve a Ação Direta de Inconstitucionalidade – precisa ser alcançado do confronto da norma questionada com a Constituição. Eventual conflito dos artigos que introduzem o Juiz das Garantias, com dispositivos anteriores espalhados pelo mesmo CPP, deve ser resolvido pelo critério da temporalidade, segundo o qual a lei nova revoga tacitamente os dispositivos de mesma hierarquia (como são da mesma hierarquia os artigos de um mesmo Código) que com ela sejam incompatíveis.
Não há por que se temer pandemônio processual, e nem alegação de nulidades, nos processos em que os juízes sigam as lições mais elementares quanto ao conflito aparente de normas.
Também permeia todo o voto do Ministro, a ideia de que o Juiz das Garantias aumentaria a morosidade dos processos criminais, beneficiando a impunidade, bem como exigiria um dispêndio elevadíssimo de recursos – que o Relator chega a afirmar, ameaçaria o próprio mínimo existencial do Judiciário brasileiro. O primeiro ponto não procede, porque a Lei não prevê, ao Juiz das Garantias, nenhuma função que, hoje, já não deva ser obrigatoriamente desempenhada por um Juiz durante o inquérito, apenas determina que o magistrado que as desempenha não seja o mesmo que julgará o mérito da ação penal.
E se, à primeira vista, a ideia dessa separação de funções possa induzir ao equívoco de que, então, serão necessários muito mais Juízes Criminais do que hoje existem, o que aumentaria o custo do Poder Judiciário, isso também não é verdade. Afinal, basta que os Juízes já existentes sejam organizados em pares, funcionando, através de um sistema de simples distribuição cruzada, como Juízes das Garantias um em relação ao outro.
Donde, por certo, surgirá o questionamento: e as comarcas isoladas, com apenas um Juiz? Trata-se de um obstáculo, hoje, perfeitamente contornável, por meio da digitalização dos processos e expedientes do Poder Judiciário. Não é mais minimamente razoável que as distâncias ou impedimentos físicos sirvam de óbice à maior concretização de uma garantia fundamental do acusado, como a do julgamento imparcial – especialmente após a aceleração exponencial que o processo eletrônico e a virtualização dos atos processuais experimentou, com a Pandemia de COVID-19.
Se passou a ser aceitável que a audiência de custódia, momento crucial para verificação da segurança e da integridade da pessoa presa, seja realizada por videoconferência; se se admite que o ato processual fundamental da citação do réu, por meio do qual se lhe dá ciência da acusação feita contra ele, se dê por Whatsapp; é absolutamente desproporcional que, para a implementação do Juiz das Garantias, de repente voltemos a nos ver presos pelas amarras do mundo analógico, de modo que a “única” solução para as comarcas de Juiz único seria a dispendiosa contratação de novos magistrados.
Outro argumento sustentado, no voto do Ministro Fux, e que já se entrevia na liminar por meio da qual ele havia determinado a suspensão do Juiz das Garantias, é o de que afirmar que a atuação, na fase de inquérito, contaminaria o magistrado com vieses cognitivos em prejuízo da sua imparcialidade, seria uma espécie de generalização preconceituosa contra os magistrados, que tentaria converter a “exceção” – que, para o Ministro, seria o aparecimento desses vieses – em “regra”. Como reforço, em seu voto, o Relator cita casos em que o Juiz, após decretar uma medida cautelar contra o investigado, vem a absolve-lo na futura ação penal.
Essa é uma afirmação, no entanto, que parece negar a própria ciência. A sua falácia está contida, justamente, na relação “regra” x “exceção”, proposta pelo Ministro, que é, essa sim, invertida. Pois desde pelo menos a década de 1950, a Psicologia já demonstrou o fenômeno da Dissonância Cognitiva, por meio da qual se opera, no inconsciente do sujeito, uma tendência à reafirmação das decisões e opiniões anteriormente formadas. No exemplo do Ministro Fux, portanto – e partindo-se do princípio de que os Juízes são humanos como todos nós, sujeitos, por isso, aos fenômenos do inconsciente já cientificamente comprovados – a regra seria justamente a possibilidade de formação de vieses, no juiz que decide durante o inquérito.
Se juízes há que, após decretarem a prisão de um investigado, ou o bloqueio dos seus bens, por exemplo, absolvem-no na futura ação penal – e não se está dizendo que não os haja – eles é que seriam a exceção, como demonstram não só os estudos em Psicologia desenvolvidos ao longo das últimas décadas, mas também a própria prática forense em matéria criminal.
O voto do Relator ainda se opõe à separação, que a Lei questionada pretende impor, dos autos do inquérito policial, daqueles da ação penal, não se dando, ao Juiz que decidirá o processo, acesso ao inquérito presidido pelo Juiz das Garantias, o qual estaria à disposição apenas da acusação e da defesa. Segundo afirmado pelo Ministro Fux, o julgador não teria como fundamentar a sua sentença, sem acesso a essas “provas” produzidas no inquérito.
Esse argumento deixa transparecer os tons inquisitoriais, que ainda colorem a cultura processual penal brasileira, que se pretende acusatória. A maior chaga do nosso Processo Penal, é que, na grande maioria dos casos, a “prova” é produzida precipuamente durante a fase de inquérito, sob a presidência da Polícia ou do Ministério Público, com pouco ou nenhum espaço para a defesa e o contraditório, principalmente para a grande maioria dos acusados, que não têm recursos para contratar advogado.
E essa “prova” é, depois, simplesmente ratificada na ação penal, quando justamente se deveria franquear, ao imputado, o amplo exercício da defesa e do contraditório. É por isso que a superação da cultura inquisitorial, rumo a um sistema acusatório, passa, mais do que pela singela separação entre as funções de acusar e julgar, pela efetiva estruturação da gestão da prova na mão e sob a iniciativa exclusivamente das partes, e pela própria definição do que seja “prova”.
Prova deve ser apenas e tão somente o que é produzido em contraditório judicial, por iniciativa das partes, em igualdade de condições. O que se produz no inquérito, justamente, não pode ser tratado como “prova”, mas tão somente como elemento indiciário. Por isso mesmo é que o projeto do Juiz das Garantias prevê que o inquérito fique inacessível ao Juiz da ação penal, mas disponível às partes, para que elas tenham a iniciativa de repetir, em contraditório, a prova eventualmente produzida na investigação.
O depoimento da testemunha ouvida no inquérito não deveria influenciar o julgamento do mérito da acusação, cabe à parte interessada promover que a mesma testemunha seja ouvida, novamente, durante a ação penal. Mas é essencial, para que a mesma seja ponderada com imparcialidade, que essa repetição da prova se dê diante de um Juiz que a esteja conhecendo pela primeira vez, e não de um magistrado já enviesado pelo que leu do depoimento anteriormente prestado à polícia, por exemplo.
Por último, merece menção o argumento defendido pelo Ministro, de que não seria competência legislativa da União criar o Juiz das Garantias, pois isso seria matéria de organização judiciária, que a Constituição determinaria ser da competência dos Estados, em Lei de iniciativa dos Tribunais de Justiça locais. O voto chega a propor que o Juiz das Garantias não seja imposto, em Lei Federal, mas facultado, para que cada Estado o crie, se entender conveniente.
Também aqui é preciso discordar do Relator. A Constituição, de fato, prevê que a simples organização judiciária fique a cargo de cada localidade, mas prevê que é competência privativa da União, legislar sobre Direito Processual Penal. A questão está em saber o que é norma de Direito Processual propriamente dita, e o que é mera norma de organização judiciária. Um bom critério poderia ser se a norma tem ou não o condão de criar um processo diferente – com garantias diferentes para o sujeito processual – a depender de onde ele venha a ser processado.
Por essa ótica, é norma de mera organização judiciária, a que determina, por exemplo, a criação de uma Vara especializada nesta ou naquela matéria – como uma vara especializada em lavagem de dinheiro, ou em crimes econômicos, que se tornou tão comum país afora. Mas o Processo Penal praticado nessa Vara é o mesmo praticado em qualquer outra Vara, tem as mesmas fases, os mesmos atos, prevê os mesmos impedimentos ao Juiz, em suma, preserva as mesmas garantias do sujeito processual.
A criação do Juiz de Garantias, por óbvio, não pode ser tratada como norma de mera organização judiciária, a ser deixada a cargo de cada Estado ou Tribunal, porque se assim o fosse, o Processo Penal seria substancialmente diferente, nos Estados com a figura, daquele nos Estados que não a implementassem. O fato de que alguns Estados, hoje, já implantaram Núcleos ou Departamentos de Inquéritos Policiais, que acabam funcionando de maneira análoga ao Juiz das Garantias, não ilide essa constatação, de que não se trata de mera norma de organização judiciária.
Nesses locais, os acusados são submetidos a um Processo Penal em que a sua garantia fundamental à imparcialidade do Juiz é melhor protegida e otimizada, do que nos locais em que tais departamentos não existam. Por isso é necessária uma Lei Federal, que obrigue a implementação do Juiz de Garantias em todo o Poder Judiciário brasileiro.
O voto do Ministro Luiz Fux apresenta muitos outros argumentos, com base nos quais Sua Excelência procura sustentar a posição contrária à implementação do Juiz de Garantias, como previsto na Lei 13.964/2019. A despeito das divergências, tratou-se de um voto de inegável fôlego jurídico, do qual não seria possível, neste espaço, abordar todos os pontos, que, de resto, vêm sendo destrinchados por toda a doutrina processual penal pátria.
É até uma injustiça com o Eminente Ministro, e prova, sem dúvida, da coragem necessária para ocupar um cargo da envergadura do que ocupa – mas que não deixa de ser a sina de todo aquele que atende à vocação de julgar – que o voto dado em julgamento não tenha “tréplica”, para responder às críticas que lhe são feitas pela doutrina, e que uma vez assumida a sua posição sobre a questão, ela se torne o objeto de tão ferrenho escrutínio, da parte dos processualistas de todo o país.
Não obstante, é impossível não fazer coro a todas as vozes que vêm discordando do entendimento do Ministro Fux, quanto ao importante instituto do Juiz das Garantias, razão pela qual oferecemos, aqui, nossa contribuição sobre os pontos que nos parecem mais relevantes, esperando, com o máximo respeito ao Relator, que, quando retomado o julgamento das ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305, o seu voto não prevaleça.