Por Odel Antun e Ana Clara da Costa Santos
No último dia 21 de janeiro, o Superior Tribunal de Justiça, no enunciado 5 da edição n. 184[1] da Jurisprudência em Teses[2], apontou diversas decisões recentes que indicam que a Corte tem adotado, majoritariamente, o entendimento de que o prazo de 90 dias previsto no parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal[3] para revisão da prisão preventiva não é peremptório, de modo que eventual atraso na execução do ato não implicaria no reconhecimento automático da ilegalidade da prisão, tampouco a imediata colocação do custodiado cautelar em liberdade.
A discussão da temática emerge perante os Tribunais Superiores[4] assim como tantas outras relacionadas às inovações ao direito criminal brasileiro, em especial ao direito processual penal, que surgiram com o advento da Lei n. 13.964/2019, e que são merecedoras de especial atenção da comunidade jurídica, sob o risco de não alcançarem os fins que motivaram a modificação da legislação brasileira.
Particularmente no que diz respeito ao dispositivo do parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal, tem-se que o legislador, alertando-se ao chocante número de presos provisórios no País[5] e aos inúmeros casos de excesso de prazo na manutenção da segregação cautelar, editou a seguinte redação: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”[6].
Atentando-se a isso, o entendimento contido no Enunciado 5 da 184ª edição da Jurisprudência em Teses parece equivocado, especialmente diante da longa caminhada percorrida em nosso ordenamento jurídico no sentido de criar mecanismos efetivos que – em defesa aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, da presunção de inocência, da duração razoável do processo, da motivação, da proporcionalidade e da excepcionalidade – evitem o excesso de prazo da prisão preventiva.
Isso porque, infelizmente, as prisões cautelares no Brasil, por representarem um relevantíssimo efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea, acabam sendo utilizadas de maneira frequente pelo poder judiciário para construir uma falsa noção de “eficiência” do aparelho repressor estatal e da própria justiça[7], sem a devida cautela aos riscos que isso representa ao Estado Democrático de Direito.
Com efeito, em matéria penal, sabe-se que, em primeiro lugar, o processo é orientado pelo princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, LVII, da nossa Constituição Federal, que consiste em um de seus principais alicerces. Trata-se de mandamento constitucional bifronte: possui uma faceta concernente ao ônus probatório da acusação (in dubio pro reo) e, outra, que se traduz no princípio in dubio pro libertate, pertinente à possibilidade excepcional de privação cautelar da liberdade ambulatória, no curso do processo.
A preocupação do legislador com a efetivação desse princípio essencial ao Estado Democrático fez emergir discussão a respeito da razoável duração da prisão processual, especialmente após a Emenda Constitucional no 45, de 2004, que inseriu o inciso LXXVIII no artigo 5˚, com a seguinte redação: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Tem-se, portanto, como princípio constitucional incorporado pelo Brasil o direito de todo acusado de ser julgado em prazo razoável ou ser posto em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo, conforme prescrevem também as fontes do direito internacional, tal como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque, em seu artigo 9º, 3, 2ª parte, ratificado pelo Decreto nº 592/92, e o artigo 7º, 5, do Decreto 678/92, que promulga sem restrições a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa de 1969). Nesse sentido, ressalta Roberto Delmanto Junior:
“O direito a ser julgado em prazo razoável ou ser posto em liberdade é, outrossim, reconhecido por praticamente todas as nações civilizadas, tanto em países que adotam o sistema romano-germânico, como nos países do sistema anglo-saxão (…)”.[8]
Não obstante, com o decorrer dos anos, o legislador pátrio permaneceu inerte em editar mecanismos que efetivamente contribuíssem na definição de um prazo razoável relativo à revisão da segregação preventiva, de modo que o Conselho Nacional de Justiça, buscando remediar as lacunas presentes em nosso ordenamento, editou, em 2009, a Resolução n. 66[9], prevendo, em seu artigo 3º, que verificada a paralisação por mais de três meses dos inquéritos e processos, com indiciado ou réu preso, deveria a Secretaria ou o Cartório encaminhar os autos imediatamente à conclusão do juiz para que fossem examinados.
Ainda naquele ano, junto ao Conselho Nacional do Ministério Público, o Conselho Nacional de Justiça editou ainda a Resolução Conjunta n. 1, por meio da qual foi fixado o período máximo de um ano para a revisão da legalidade da manutenção das prisões provisórias e definitivas, das medidas de segurança e das internações de adolescentes em conflito com a lei.
No âmbito da legislação formal, a disposição da matéria permaneceu restrita à interpretação teleológica do conjunto de normas presentes em nosso Código de Processo Penal: pelos artigos 311 a 316 do CPP descortinava-se a regra vigente em nosso ordenamento jurídico de que o acusado deverá responder em liberdade, sendo possível a decretação de prisão preventiva apenas em caráter de exceção (devendo ser interpretada sempre de forma estrita, sob o risco de subverter a lógica por trás de todo nosso sistema de justiça); já a aferição do limite temporal à segregação provisória era estabelecida mediante observação dos prazos relativos à instrução processual.
Os mencionados mecanismos, contudo, não se demonstraram suficientes para frear as frequentes manutenções de segregações preventivas por períodos desproporcionais sem a devida revisão de seus motivos ensejadores, que se estendem até os dias atuais. À exemplo, cita-se o Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 153214, recentemente apreciado pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no qual discutiu-se a legalidade de segregação preventiva determinada em agosto de 2015, e já se estendia por 6 anos e 6 meses. Na oportunidade, foi dado provimento ao recurso para substituir a prisão preventiva do réu por medidas cautelares alternativas.
Apenas no ano de 2019, diante da urgente necessidade de revisão da situação dos presos provisórios no País, a evolução da discussão da matéria no cenário nacional culminou na inserção do parágrafo único ao artigo 316 do Código de Processo Penal, prevendo, finalmente, a exigência de revisão da manutenção da prisão preventiva no prazo expresso de 90 dias, sob pena de tornar a segregação processual ilegal.
A respeito do novo texto legal, é cristalina a seguinte observação tecida pelo Exmo. Ministro Marco Aurélio na oportunidade do julgamento da Suspensão de Liminar em Habeas Corpus n. 1395:
“Tem-se hoje, considerado o parágrafo único do artigo 316, introduzido, repita-se, pelo pacote anticrime, Lei nº 13.964/2019, que, imposta a custódia preventiva, deverá o Órgão emissor da decisão revisar a necessidade da manutenção a cada 90 dias, mediante ato fundamentado, de ofício, sob pena de tornar a ilegal prisão. Iniludivelmente tem-se preceito que atende, em primeiro lugar, a dignidade do homem, do custodiado, que não pode ser jogado, ao que o ministro da Justiça José Eduardo Cardoso disse, às masmorras, esquecido como se animal fosse. É um ser humano e deve ser tratado como tal. Em segundo lugar, a norma imperativa do parágrafo em discussão dispõe cumprir ao emissor da decisão que implicou custódia preventiva revisá-la a cada 90 dias, pouco importando onde esteja o processo, na maioria das vezes eletrônico. Não se trata de algo inviável, no mundo da computação. Há de ter-se, quer no Judiciário, quer no Ministério Público – Estado- acusador –, quer na Defensoria Pública, quer na polícia, cadastro contendo a situação jurídica daqueles que, uma vez acusados do cometimento de desvio de conduta, estejam sob a custódia do Estado. Pelo preceito, renovada a necessidade, mediante pronunciamento judicial fundamentado, da prisão preventiva, não se tem o excesso de prazo. O legislador foi explícito ao cominar consequência para o extravasamento dos 90 dias sem a formalização de ato fundamentado renovando a custódia. Previu, na cláusula final do parágrafo único do artigo 316, que, não havendo a renovação, a análise da situação do preso, a prisão surge ilegal. A tanto equivale, sem sombra de dúvida, a cláusula final: “[…] sob pena de tornar a prisão ilegal”.”
O objetivo do mencionado dispositivo emerge de maneira evidente: remediar os constantes “esquecimentos” dos presos cautelares, mediante a instituição de um mecanismo de controle de legalidade à prisão preventiva independentemente de provocação prévia, tendo em vista que a segregação preventiva, nos termos do artigo 316 do CPP, é estritamente condicionada a pressupostos autorizadores[10].
E é justamente a preservação dessa finalidade que a grave consequência de ilegalidade da prisão quando da não observância do prazo previsto para realização da revisão da prisão processual busca proteger e, mesmo por isso, o posicionamento contido no enunciado 5º da 184ª edição da Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça parece absolutamente equivocado.
Afinal de contas, tal como assentado pelo Exmo. Ministro Marco Aurélio, ainda no julgamento da Suspensão de Liminar em Habeas Corpus n. 1395, os Tribunais pátrios estão sujeitos, em sua atuação, ao princípio da legalidade estrita, e sendo o dispositivo legal claro e preciso, não cabe qualquer interpretação a fim de criar uma exceção não prevista na norma, que esvaziaria por completo a sua finalidade.
Neste ponto, recorrendo, mais uma vez, às palavras de Roberto Delmanto Junior, é preciso destacar que, em matéria penal, “tratando-se do direito à liberdade, que, ao lado do direito à vida, é o que há de mais precioso à existência humana, ínsito à sua dignidade, não é facultado ao Judiciário transformar em letra morta regras insculpidas em nosso ordenamento processual penal”[11], regras estas que prescrevem prazos máximos para a realização dos atos processuais e, com isso, dão o contorno de razoabilidade ao tempo que pode uma pessoa permanecer presa sem a conclusão do processo a que responde.
Reforçando esse entendimento, a respeito da norma do parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal, assevera Renato Brasileiro que “não se pode, portanto, condicionar o reconhecimento dessa ilegalidade à avaliação do magistrado competente, sob pena de se tornar letra morta o novo regramento introduzido pela Lei n. 13.964/19, o qual, nesse ponto, é muito claro (…)”[12].
Portanto, nos termos estritos da lei, não restam dúvidas que o prazo nonagesimal para revisão da prisão preventiva é peremptório, de modo que a inobservância deste limite temporal acarreta, automaticamente, na ilegalidade da segregação em questão.
NOTAS
[1] Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp
[2] Publicação periódica que apresenta um conjunto de teses sobre determinada matéria, com os julgados mais recentes do Tribunal sobre a questão..
[3] Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.
[4] Resta pendente um posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.582/DF.
[5] Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), em 2019, dentre os 752.277 (setecentos e cinquenta e dois mil e duzentos e setenta e sete) presos no Brasil, 248.929 (duzentos e quarenta e oito mil e novecentos e vinte e nove) são presos provisórios, o que corresponde a 33,09% (trinta e três e nove centésimos porcento).
[6] BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Rio de Janeiro: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm.
[7]LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 714.
[8]DELMANTO Jr., Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração”, Renovar, 2ª ed., p. 301.
[9]Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/93#:~:text=Cria%20mecanismo%20de%20controle%20estat%C3%ADstico,dos%20casos%20de%20pris%C3%A3o%20provis%C3%B3ria.
[10] LOPES Jr, Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
[11] DELMANTO Jr., Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração”, Renovar, 2ª ed., p. 313.
[12] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: Volume único. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1101.