Por Alvaro Augusto Orione Souza, publicado no Boletim 334 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) – Setembro/2020
Os limites da ponderação de princípios, à luz do exemplo da prisão em segunda instância
Resumo: Nos anos compreendidos entre os julgamentos, pelo Supremo Tribunal Federal, do HC 126.292, e das ADCs 43, 44 e 54, o entendimento favorável à prisão em segunda instância foi incorporado automaticamente, pelos Tribunais de todo o país. Esse fenômeno desconsiderou as limitações da ponderação de princípios, que não é apta a oferecer soluções universais e generalizáveis, aplicáveis a todo e qualquer conflito entre quaisquer dois princípios.
Palavras-chave: Prisão em segunda instância. Ponderação de princípios. Limites.
Limitations to the ponderation of principles in view of the possibility of automatic imprisonment following the confirmation of conviction by an appellate court
Abstract: During the years between Brazil´s Supreme Court rulings on the HC 126.292 and on the ADCs 43, 44 and 54, the position in favor of the possibility of one’s incarceration following a conviction sustained by a Court of Appeals was automatically incorporated by Courts all over the country. This phenomenon disregarded the limits of the ponderation of principles, which is not apt to offer universal and general solutions, applicable to each and any collision between the same two principles.
Keywords: Incarceration after ruling by a Court of Appeals. Ponderation of principles. Limits.
No início do último mês de novembro, o Supremo Tribunal Federal, em boa hora, reconheceu a constitucionalidade do artigo 283 do CPP, assentando, de conformidade com a garantia constitucional da presunção de inocência, que, antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, só se admite prisão cautelar, e não para “execução provisória” da pena.
No entanto, passaram-se mais de três anos, desde o ponto de inflexão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que foi o julgamento do HC 126.292 (Rel. Exmo. Min. Teori Zavascki), a parir do qual eclodiu a coqueluche de “prisões em segunda instância”, para início do cumprimento da reprimenda antes do trânsito em julgado da condenação. Foram anos de dolorosa anormalidade constitucional, a qual, no entanto, acabou sendo normalizada pelos Tribunais pátrios, que reproduziram, imediata e automaticamente, o entendimento alcançado, na apreciação de um habeas, antes que a Corte Constitucional proferisse um julgamento definitivo sobre a matéria.
Nesse período, é verdade que o STF revisitou o tema em algumas oportunidades – talvez a mais famosa delas, o julgamento do HC 152.752 (Rel. Exmo. Min. Edson Fachin) – mas o fato é que ainda não existia um posicionamento definitivo quanto à possibilidade ou não de execução da pena, antes do trânsito em julgado da condenação, o que só viria a acontecer quando do julgamento, ansiosamente aguardado por toda a sociedade, das ADCs 43, 44 e 54 – julgamento em que se decidiu, justamente, pela impossibilidade da execução provisória.
Isso, no entanto, não impediu os Tribunais de todo o país de aplicarem, ao longo desses anos, o entendimento de que era possível o início do cumprimento da pena, após a condenação em segunda instância, determinando, assim, a prisão dos acusados, uma vez esgotados os recursos ordinários às Cortes de apelação.
Com o julgamento de mérito das mencionadas ADCs, caminha-se para o restabelecimento da ordem constitucional, no que concerne ao momento de início do cumprimento da pena. Contudo, fica-se diante do desconfortável questionamento: como puderam, as Cortes de Justiça de toda a nação, reproduzir tão enfaticamente um entendimento que ainda era precário, e que, inclusive, acabou revertido pelo Pleno do Supremo, no julgamento definitivo da matéria?
Ao longo dos mais de três anos de intenso debate a respeito do assunto, os partidários da chamada prisão em segunda instância esgrimiram, entre seus principais argumentos, o de que a presunção de inocência (artigo 5o, inciso LVII da Constituição Federal de 1988) não seria um valor absoluto, podendo sofrer ponderações quando em conflito com outros valores. E, no caso do início do cumprimento da pena, a presunção de inocência deveria ceder frente aos valores enfeixados naquilo que o Exmo. Min. Luís Roberto Barroso chamou de efetividade mínima do sistema penal.
Essa ideia é encontrada já no voto condutor do HC 126.292, proferido pelo Relator, Exmo. Min. Teori Zavascki: “Assim, ao invés de constituir um instrumento de garantia da presunção de não culpabilidade do apenado, [os apelos extremos] acabam representando um mecanismo inibidor da efetividade da jurisdição penal. (…) A retomada da tradicional jurisprudência, de atribuir efeito apenas devolutivo aos recursos especial e extraordinário (como, aliás, está previsto em textos normativos) é, sob esse aspecto, mecanismo legítimo de harmonizar o princípio da presunção de inocência com o da efetividade da função jurisdicional do Estado.”(i)
A posição foi desenvolvida, também, no HC 152.752, do qual se toma, por todos, o voto do Exmo. Min. Luís Roberto Barroso: “Quais são os princípios que estão em jogo na nossa discussão aqui? De um lado, o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade, que é muito importante e está lá na Constituição. De outro lado, está um outro valor constitucional que é a efetividade mínima do sistema penal. Porque a efetividade mínima do sistema penal abriga valores importantes como a realização da justiça, a proteção de direitos fundamentais, a proteção do patrimônio público, a proteção do patrimônio privado, a probidade administrativa.”(ii)
Não é bem esse o foco do presente artigo, mas é impossível revisitar votos tão emblemáticos, de acórdãos que moldaram um mecanismo de privação da liberdade que o próprio STF, depois, reconheceria como ilegítimo, sem se perguntar de onde teria surgido esse tal princípio da efetividade mínima do sistema penal. Porque, enquanto as raízes da presunção de inocência podem ser concretamente encontradas no inciso LVII, do artigo 5º da Constituição Federal, a propalada efetividade mínima do sistema penal parece derivar, em essência, não mais do que de um elaborado esforço argumentativo.
Esse “princípio” pode ser identificado como mais um sintoma daquilo que Lenio Streck chama de panprincipiologismo, por meio do qual a criação desenfreada de princípios acaba se erigindo em verdadeiro “álibi para decisões que ultrapassam os próprios limites semânticos do texto constitucional”.(iii) A letra da constituição fala expressamente em trânsito em julgado, enquanto requisito para que o cidadão possa ser considerado culpado – e o que é iniciar a execução da pena, senão considerá-lo culpado? Mas, por meio de um malabarismo argumentativo, chegou-se a uma suposta efetividade mínima do direito penal, com base na qual se engambelou, por três anos, o texto constitucional.
Era, assim, questionável, de partida, a eleição da efetividade mínima do sistema penal, enquanto “princípio”, que pudesse ser contraposto à presunção de inocência, para fins de ponderação e mitigação desta. Mas o objetivo deste artigo não é questionar o resultado da “ponderação” que conduziu à prisão em segunda instância, e sim o fato do resultado em questão ter sido automaticamente aplicado, pelas Cortes do país, sem maiores reflexões.
A ideia da ponderação de princípios parte da distinção das normas (enquanto gênero) em regras e princípios (enquanto espécies). Conflitos entre regras devem ser resolvidos no modelo “tudo ou nada” – uma regra vale, e a outra não, ou vice-e-versa. Já conflitos entre princípios devem ser resolvidos por meio de ponderação, sem se recusar validade a nenhum deles, mas apenas se reconhecendo que, no conflito em questão, um dos princípios conflitantes deve prevalecer, e o outro deve ceder.
A ponderação de princípios é bem explicada na obra de Robert Alexy(iv) e, não sem razão, dada a qualidade das soluções que oferece, popularizou-se, hoje em dia, enquanto ferramenta argumentativa para a resolução de complexas controvérsias jurídicas. Parece não ter sido diferente com a discussão em torno da execução da pena antes do trânsito em julgado da condenação.
Os partidários da chamada prisão em segunda instância argumentavam, e ainda argumentam, que o valor presunção de inocência, embora cláusula pétrea de nossa constituição, deveria ser ponderado contra os valores enfeixados sob a efetividade mínima do sistema penal. E nessa ponderação, era a presunção de inocência que deveria ceder, segundo o entendimento que predominou até novembro último, e que foi, nos últimos anos, aplicado com cores de definitividade pelos Tribunais de todo o país – sem, reitere-se, que houvesse sido ainda proferida, pelo Pretório Excelso, qualquer decisão final de mérito sobre a questão.
Como consequência, o ambiente de observância à garantia fundamental da presunção de inocência, ambiente este que apenas começou a se instalar em 2009 (com o julgamento, pelo Supremo, do HC 84.078, Rel. Exmo. Min. Eros Grau)(v), isto é, 21 anos após a promulgação da Carta Magna, e não sem a teimosa resistência de alguns Tribunais Estaduais, cedeu lugar, novamente, ao regime de execução de condenações ainda não definitivas. Por longos três anos, o normal voltou a ser, não a tranquilidade do respeito ao texto constitucional, mas sim a angústia do encarceramento daqueles que ainda podiam ver revertida, anulada, ou diminuída a sua pena.
Diante da disfuncionalidade que se pôde observar, no tempo em que reinou a execução provisória da pena, o objetivo deste texto é chamar atenção para o fato de o entendimento então firmado ter sido aplicado automaticamente pelos Tribunais de todo o país, conferindo universalidade àquela ponderação de princípios.
A questão que se pretende levantar diz respeito à legitimidade, ou não, do mecanismo de ponderação (da forma como tecnicamente enunciado por Robert Alexy) para oferecer uma única resposta correta a toda e qualquer hipótese de colisão entre dois princípios.
E, nesse ponto, é importante não perder de vista o alerta dado, pelo próprio Alexy, quanto aos limites e possibilidades reais da ponderação de princípios, bem sintetizados em seu texto “Sistema Jurídico, Principios Jurídicos y Razón Práctica”.(vi)
Nele, Alexy afirma que, em caso de colisão entre dois princípios, não existe uma única solução possível, uma única resposta correta para o conflito. Apenas seria esse o caso, se fosse possível elaborar uma teoria dos princípios que, mais do que enunciá-los, oferecesse uma ordem hierárquica entre eles, segundo a qual se pudesse saber, já de antemão, dados dois princípios, qual deveria prevalecer sobre o outro, numa eventual colisão.
Segundo o autor, embora seja o ideal pelo qual a teoria dos princípios deve se esforçar, esse cenário é inalcançável. O máximo que se consegue é delinear alguns parâmetros, através dos quais se possa restringir minimamente as possibilidades de resolução da colisão entre dois princípios, sem nunca, contudo, alcançar uma resposta universalmente válida para todos os casos. É tentar dar contornos o mais concretos possível à resolução do choque entre princípios, mas sem nunca deixar de admitir que a ponderação pode ser resolvida de outra forma (isto é, que o princípio que hoje cedeu, amanhã possa prevalecer), a depender do caso concreto.
O autor passa, então, ao delineamento dessas balizas. A primeira delas seria a ideia de condições de prioridade. O fato de uma determinada solução para a colisão entre dois princípios não poder ser universalizada, não significa que dela não se possam extrair algumas condições, que ajudem a direcionar a solução dos próximos casos em que esses princípios se choquem.
Às condições de prioridade, vem se somar uma necessária estrutura de ponderação segundo a qual, observando ao princípio da proporcionalidade (em seus três corolários, adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), a mitigação do princípio que cede corresponda necessariamente ao maior aproveitamento daquele que prevalece.
Por fim, o terceiro parâmetro determina que toda prioridade encontrada, na ponderação entre dois princípios, é sempre uma prioridade prima facie. É dizer, a depender da carga argumentativa, da carga de prova de cada caso concreto, pode ser que, na próxima colisão entre os mesmos princípios, aquele que hoje cedeu venha a prevalecer.
Desse modo, a ponderação de princípios não é capaz de produzir enunciados que possam ser universalmente aplicados na resolução de conflitos, segundo uma fórmula “o princípio ‘A’ deve sempre ceder perante o princípio ‘B’” – ou, num paralelo com o tema em discussão, “a presunção de inocência deve sempre ceder perante a efetividade mínima do sistema penal”.
No máximo, de acordo com Alexy, poder-se-ia estabelecer que i) “nas condições ‘x’, ‘y’, ‘z’, o princípio ‘A’ deve prevalecer sobre o ‘B’” (condições de prioridade); ii) se, e somente se, de modo proporcional, a “perda” sofrida pelo valor que cede for na mesma medida do “ganho” obtido com a prevalência do outro valor (estrutura de ponderação); e iii) mesmo essa prevalência seria apenas prima facie, e nova ponderação, num novo caso, poderia gerar um resultado diferente (prioridades prima facie).
O que se conclui, portanto, e que nem sempre é lembrado quando se alardeia a ponderação de princípios enquanto recurso argumentativo para a solução de controvérsias, é que a ponderação não é capaz de oferecer uma única solução para a colisão entre dois princípios, que seja aplicável a todos os casos. De modo que não é legítimo atribuir caráter de universalidade – de aplicabilidade geral e abstrata a qualquer outra hipótese de conflito entre esses mesmos valores – ao produto de determinada ponderação in concreto entre dois princípios.
No que interessa para a crítica aqui pretendida, a afirmação de que a presunção de inocência deve ceder perante a efetividade mínima do sistema penal, tornando legítima a prisão antes do trânsito em julgado, mesmo antes do julgamento das ADCs 43, 44 e 54, não era universalmente válida. O movimento observado em nossos Tribunais, os quais automatizaram a execução provisória da pena, com base na decisão tomada pelo STF no HC 126.292, foi uma distorção, que não respeitou os limites dentro dos quais a ponderação de princípios é realmente capaz de oferecer soluções às controvérsias jurídicas.
Portanto, não se podia ter admitido, como entendimento universal, que a presunção de inocência devia ceder a outros valores, legitimando sempre a prisão em segunda instância; senão apenas que, em dadas situações, a ponderação poderia – como, em verdade, ainda pode, nas hipóteses de prisão cautelar – ser resolvida favoravelmente ao encarceramento antes do trânsito em julgado. Fixada essa conclusão, podemos aplicar, à discussão a respeito da prisão em segunda instância, o filtro das limitações à ponderação de princípios defendidas por Robert Alexy.
E, com a máxima vênia ao posicionamento contrário, o melhor resultado, para a ponderação envolvida no caso, que respeita o texto constitucional de 1988, é o de que i) as condições de precedência, as circunstâncias nas quais seria admissível a prisão do acusado antes do trânsito em julgado, seriam apenas aquelas autorizadoras da prisão preventiva, da prisão por necessidades cautelares, e não para a execução provisória da pena.
Isso porque ii) essa seria a única estrutura de ponderação na qual o ganho obtido, em termos de efetividade do sistema penal (concedendo-se que isso exista), se mostraria proporcional ao sacrifício imposto à presunção de inocência. Tendo-se sempre em mente que iii) essa ponderação é apenas prima facie, podendo haver casos nos quais, ainda que presentes as condições para a prisão preventiva, a solução da colisão de princípios poderá se dar no sentido contrário, ou ser, ao menos, mitigada a precedência prima facie do valor efetividade do sistema penal (por exemplo, nas hipóteses do artigo 318 do CPP, de substituição da prisão preventiva pela domiciliar).
Mas ainda que se entenda que a ponderação em questão deveria ser resolvida de maneira diversa, a crítica que aqui se pretende é ao automatismo com que o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, no HC 126.292, foi replicado pelos Tribunais de todo o país, sem se levar em conta que o mecanismo da ponderação de princípios, segundo os ensinamentos do próprio Robert Alexy, é limitado, e não consegue oferecer uma única resposta correta, universal, sempre válida em quaisquer casos de conflitos entre dois princípios.
Mesmo no período de arbitrariedade e insegurança, que antecedeu o julgamento de mérito da questão, pelo Supremo, as Cortes de Apelação não poderiam ter se furtado de, a cada vez que decretassem a prisão para execução provisória da pena de um acusado, fundamentar suas decisões em uma nova ponderação, própria às particularidades do caso “da vez”, por meio da qual se demonstrasse as razões por que entendiam que a presunção de inocência deveria, naquela hipótese concreta, ser sacrificada.
Alvaro Augusto Orione Souza é sócio do Antun Advogados Associados, mestrando em Direito Processual Penal pela PUCSP, especialista em Processo Penal pela Universidade de Coimbra e especialista em Direito Penal Econômico pela FGV. Advogado.
Notas
i BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 126292. Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 17/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-100 DIVULG 16-05-2016 PUBLIC 17-05-2016.
ii BRASIL. Supremo Tribunal Fedral. HC 152752, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 04/04/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-127 DIVULG 26-06-2018 PUBLIC 27-06-2018.
iii STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 538-539.
iv ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.
v BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 84078, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-05 PP-01048.