Por Odel Antun e Ana Clara da Costa Santos
O Superior Tribunal de Justiça tem aplicado, em juízo de admissibilidade de Mandado de Segurança originário, o seu enunciado n. 41, editado no ano de 1992, pela Corte Especial.
O texto, em consonância com o disposto no artigo 105, I, b, da Constituição Federal, que prevê hipóteses taxativas de processamento originário de Mandado de Segurança pelo Superior Tribunal de Justiça – impetração contra ato de Ministro de Estado, dos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica ou do próprio Tribunal -, afasta peremptoriamente a competência da corte para “processar e julgar, originariamente, mandado de segurança contra ato de outros Tribunais ou dos respectivos órgãos.”.
Com isso, a corte exclui de sua apreciação, de forma indistinta, toda impetração que vise cessar lesão ou ameaça a direito emanada de ato de Tribunal e seus órgãos, mesmo aquelas envolvendo discussões excepcionais de caráter penal – como, por exemplo, e para o que aqui interessa, Mandados de Segurança impetrados por pessoas jurídicas que figuram de forma exclusiva no polo passivo de ações penais e, por essa razão, não podem se utilizar do habeas corpus (a exemplo do AgRg no MS 23632 e do AgRg no MS 22073).
Justamente por isso, as hipóteses de aplicação da súmula 41 pelo Tribunal Superior merecem ser revisitadas, já que a promulgação da Constituição Federal, bem a elaboração do enunciado 41, precederam a edição da Lei 9.605/1998, que inaugurou, no ordenamento pátrio, a possibilidade de incriminação de pessoa jurídica por crime ambiental, e revolucionou o entendimento jurisprudencial quanto à possibilidade de impetração do remédio mandamental em matéria penal.
A bem da verdade, basta breve análise dos precedentes que inspiraram a edição da súmula para se constatar que o enunciado teve como base entendimento que vinha sendo sedimentado pela Corte em Mandados de Segurança que discutiam matérias estritamente civis, destacados, em especial, os seguintes casos: MS 773, MS 525, AgRg no MS 564, MS 460 e MS 129. É dizer: nenhum dos precedentes mencionados tratava de direito líquido e certo em matéria criminal, que não pudesse ser amparado por habeas corpus.
Isso porque apenas a partir da inovação do artigo 3˚ da Lei de Crimes Ambientais de 1992, que estampou a inequívoca superação do brocardo latino societas delinquere non potest1, passou a ser reajustado o entendimento jurídico nacional para admitir que o ente coletivo a quem, por incompatibilidade lógica, não é reconhecido o “direito de ir e vir” – não podendo se socorrer do remédio constitucional do habeas corpus para enfrentar ilegalidade ou teratologia de que se veja vítima, no curso de persecução penal –, possa recorrer ao mandado de segurança visando os mesmos efeitos do habeas2.
A possibilidade de impetração residual de remédio mandamental para socorro de ente moral ficou ainda mais evidente a partir do ano de 2013, quase duas décadas após a edição da súmula 41, quando, no julgamento do Recurso Extraordinário 548181, o Supremo Tribunal Federal fixou dispensável a dupla imputação do crime ambiental3, dando ensejo a novas hipóteses de responsabilização criminal, nas quais a pessoa jurídica é a única a figurar no polo passivo da ação penal.
Por essa lógica, excluída qualquer hipótese de utilização da via do habeas corpus – por não haver ameaça ao direito de ir e vir do ente moral nem de eventual corréu pessoa física –, o remédio mandamental seria o único, em caráter residual, apto a sanar eventual ilegalidade impingida à pessoa jurídica.
A evolução do entendimento pauta-se no disposto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, LXIX, que determina a concessão do mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas-corpus ou habeas-data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
Ademais, pauta-se, analogicamente, na maior permissividade da utilização da via habeas corpus, em caráter excepcional, para trancamento de ação penal, por importar a persecução penal em demasiado ônus ao paciente, devendo a mesma possibilidade ser garantida à pessoa jurídica, via ação mandamental.
É que, como bem explicado por Luiz Regis Prado4, não há como, em termos lógico-jurídicos, romper princípio fundamental como o da irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica, ancorado solidamente no sistema de responsabilidade de pessoa natural, sem fornecer, em contrapartida, elementos básicos e específicos conformadores de um subsistema ou microssistema de responsabilidade penal, restrito e especial, inclusive com regras processuais próprias.5
O Superior Tribunal de Justiça, contudo, parece não ter reexaminado seu entendimento jurisprudencial, quanto ao cabimento originário do remédio mandamental, à luz dos novos cenários jurídicos advindos dos ditames da Lei 9.605/1998, e segue deixando de admitir mandados de segurança em matéria penal, impetrados em caráter residual por pessoa jurídica, sob o manto da anacrônica Súmula 41.
O não conhecimento de impetrações originárias no STJ, contra ato de Tribunal e seus órgãos, com base no enunciado 41, de forma indistinta aos casos que discutem matéria penal, em sentido oposto às recentes evoluções jurídicas em cenário nacional, importa, verdadeiramente, em afronta ao disposto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, que determina que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Não se ignora, aqui, a possibilidade de interposição de recurso ordinário constitucional em mandado de segurança para a submissão da matéria ao Superior Tribunal de Justiça – meio pelo qual não se questiona a competência da corte para processamento e apreciação do pleito. Todavia, em hipóteses extraordinárias em que o tribunal de origem obste a análise da matéria pelo Tribunal Superior, por eventual inércia ou demora do processamento do recurso tempestivamente interposto, deverá ser admitida, na corte, a utilização da via mandamental, em caráter excepcional, tal como admite-se, em exceção, a via do habeas em substituição ao recurso próprio (a exemplo dos HC 167152, 167152 e 350383, todos do STJ).
Afinal, a persecução criminal por crime ambiental praticado por pessoa jurídica, apesar de se tratar de matéria penal peculiaríssima, está submetida de modo inarredável aos ditames rígidos dos princípios constitucionais penais do Estado de Direito Democrático6, assim como as persecuções contra pessoa natural.
Nesse cenário, a admissão do mandado de segurança contra ato de Tribunal, no STJ, teria o viés de evitar o perecimento de direito líquido e certo, que não se vê amparado por qualquer outro meio apto, mesmo o recursal.
Assim sendo, e sabendo que quando da promulgação do texto constitucional não havia hipótese na qual a decisão de Tribunal local violasse, em matéria penal, direito não amparado pelo habeas, e que a realidade jurídica nacional, no entanto, de lá para cá, evoluiu no sentido de admitir imputações criminais exclusivamente contra a pessoa jurídica, torna-se essencial que o Superior Tribunal de Justiça revisite a interpretação da súmula 41, no sentido de não abandonar ao desamparo o direito líquido e certo de pessoas jurídicas, que não se podem valer do habeas corpus, especialmente se esgotadas as vias recursais ordinárias – vias estas que se entravam na determinação de interposição perante o tribunal a quo no trâmite não urgente – e quando iminente o perecimento do direito, tal como de não se submeter a ato processual, em processo penal que não tenha adimplido os pressupostos processuais e as condições da ação.
NOTAS
1 Art. 3.º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.
Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo
2 Cf. bem delineado pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator do AgRg no MS 13.533/SC
3 (RE 548181, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 06/08/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014 RTJ VOL-00230-01 PP-00464)
4 PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente: crimes ambientais (Lei 9.605/1998) – 7. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.
5 PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente: crimes ambientais (Lei 9.605/1998) – 7. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.
6 PRADO, Luiz Regis. Direito penal do ambiente: crimes ambientais (Lei 9.605/1998) – 7. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.