Por Odel Antun e Alice Pereira Kok
No último dia 31 de março de 2022, foi sancionada a Lei 14.321/2022, que altera a Lei 13.869/2019 – também conhecida como “Lei de Abuso de Autoridade” (LAA) -, para tipificar o crime de “violência institucional”, ao qual se atribuiu pena de detenção, de três meses a um ano. A lei tem vigência imediata, e acrescenta, à Lei de Abuso de Autoridade, o art. 15-A, com a seguinte redação:
“Violência Institucional
Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:
I – a situação de violência; ou
II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
Com a nova legislação, comete o crime de violência institucional o agente público que submeter a vítima ou testemunha de crimes violentos a “procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos”, levando-a a reviver a situação de violência ou outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização. O texto prevê, ainda, punição para a “revitimização”, podendo, nesses casos, ser aplicada pena em dobro ao agente público. Além disso, caso o agente não intervenha diante de intimidação feita por terceiros – como seria o caso de um advogado, durante uma audiência, por exemplo, intimidando vítima ou testemunha – a pena pode ser acrescida em dois terços.
O sujeito ativo do delito, nos termos do art. 2º, da Lei de Abuso de Autoridade, é qualquer agente público, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, também, membros do Poder Legislativo, Executivo e Judiciário. Em regra, por essa Lei, portanto, não são puníveis advogados particulares. A consideração a envolvimento de terceiro (que não seja agente público) até foi feita no §1º do dispositivo legal transcrito, mas apenas, como acima referido, quando o responsável pelo ato se omitir diante da intimidação praticada por terceiro, sem a responsabilização do particular em si.
O Projeto de Lei foi inicialmente apresentado pela Deputada Soraya Santos (PL-RJ), em suposta resposta à conduta de agentes públicos durante audiência de instrução e julgamento do recente caso envolvendo o empresário André Aranha, acusado de estupro de vulnerável pela influenciadora digital Mariana Ferrer. Naquela ocasião, a vítima teria sido constrangida e descredibilizada pela defesa do acusado durante o ato judicial, momento no qual, supostamente, o representante do Ministério Público e o Juiz oficiantes no processo quedaram-se silentes. Na época, os vídeos da audiência telepresencial viralizaram na internet, causando grande clamor popular.
Em razão do mesmo emblemático caso, já havia sido sancionada, no final de 2021, a Lei 14.245 – conhecida como Lei Mariana Ferrer –, que alterou o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei dos Juizados Especiais, para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas, além de estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo; sem, contudo, instituir crime específico à legislação vigente.
Todas as novas medidas visam, em tese, impedir a “revitimização” – situação na qual, no curso de investigações ou processos, vítimas ou testemunhas são submetidas a situações constrangedoras, questionamentos inadequados, afirmações que visam descredibilizar-lhes, intimidações ou estigmatizações, que possivelmente levam a experienciar, nova e negativamente, a situação de violência de que foram alvo ou que presenciaram.
Especialmente nos crimes sexuais, não raros são os relatos de vítimas que passam por situações de suposta violência institucional, desde a primeira ida à delegacia, quando, por vezes, são desmotivadas a registrar a ocorrência e levar o crime a conhecimento das autoridades; em exames de corpo de delito, eventualmente realizados por servidores despreparados e pouco sensíveis à situação; até durante oitivas e audiências, nas quais, ocasionalmente – e até em consequência lógica ao princípio do contraditório e da ampla defesa, como será melhor explicado linhas abaixo – , podem ser questionadas, desmoralizadas e descredibilizadas.
Embora a intenção do legislador seja louvável e exista um problema real a ser enfrentado quando consideramos, especialmente, crimes sexuais e o tratamento atribuído às vítimas, bem como o machismo estrutural socialmente intrínseco, não é possível abordar o assunto com leviandade e respostas rápidas. Há diversos apontamentos importantes a serem feitos quanto às novas normativas, especialmente acerca daquela que insere novo delito ao ordenamento jurídico, situação excepcionalíssima – ou, ao menos, que assim deveria ser.
Um primeiro ponto a ser debatido é o de que a ocorrência do fenômeno posto pela lei como “revitimização”, até certa medida, é inevitável. Ora, evidentemente, no curso de um processo ou de uma investigação, sempre se deve buscar fornecer tratamento humanizado a todas as partes envolvidas, incluindo-se, aí, testemunhas e, especialmente, vítimas de crimes violentos, concedendo-lhes o maior acolhimento possível diante da conjuntura particular que experienciaram. Contudo, no exercício do contraditório e da ampla defesa, é inviável blindar a vítima ou testemunha de referências aos fatos processados, vedando-lhes de toda e qualquer situação que possa ser interpretada como “revivência” do momento de violência.
Para exemplificar, em crimes como estupro, ou lesão corporal grave, que são delitos (violentos) que naturalmente deixam evidências físicas, faz-se necessário exame conhecido como “corpo de delito”, consubstanciado no conjunto de procedimentos adotados com o fito de evidenciar e documentar a ocorrência de uma infração penal que deixou vestígios. O exame, porém, pode ser (e normalmente é) invasivo e até traumático, especialmente para uma recém vítima de crime violento, como os acima mencionados, levando o indivíduo a “reviver” o momento de violência sofrida (narrando os fatos, submetendo-lhe a exames médicos etc.) – e isto, vale dizer, até mesmo quando o exame é realizado de forma humanizada e dentro dos parâmetros legalmente estabelecidos.
Da mesma forma, durante oitivas, ou audiências de instrução e julgamento, a vítima e/ou a testemunha, comumente, são submetidas a questionamentos sobre os fatos – o que, igualmente, pode ser um processo traumático para aqueles que vivenciaram ou presenciaram um ato criminoso violento. Ocorre, todavia, que em um processo regido pelo contraditório e ampla defesa, pilares centrais do Estado democrático de direito, não é possível simplesmente abrir mão de se ouvir a vítima ou testemunha central e, do ponto de vista de defesa, eventualmente, buscando desacreditar sua versão, para simplesmente assegurar que estas não revivam momentos traumáticos.
Ao acusado – ou até mesmo ao investigado -, é dado utilizar de todos os meios (evidentemente) legais para construir sua defesa técnica e produzir as provas necessárias para tanto, inclusive meios que podem ser vistos, em determinados casos, como grosseiros ou rudes, como questionar uma vítima de estupro sobre o crime e as circunstâncias em que este teria ocorrido. Tolher tal garantia, em respeito à suposta preservação psico-mental da vítima ou testemunha, é, em última análise, tolher a ampla defesa.
Ainda que se busque preservar a vítima ou testemunha, não se deve sacrificar a produção probatória apta a assegurar que a eventual condenação por crime violento esteja dentro das exigências e parâmetros legais. Embora a palavra da vítima, segundo entendimento jurisprudencial vigente[1], assuma especial relevância nos crimes sexuais, esta não pode ser a única prova a fundamentar uma condenação criminal.
Se assim fosse, bastaria o indivíduo se dirigir à delegacia mais próxima, reportar um crime violento e pronto, o suposto responsável estaria preso e condenado, ainda que inocente. É necessário estabelecer efetivo contraditório, de modo que, ao menos, se mitigue condenações injustas. E isso, por si só, pode levar a vítima ou testemunha a “reviver” a situação de violência possivelmente experienciada, por maior que seja a sensibilidade com a qual se conduza a investigação e processo.
Mas para além disso, há de se convir, também, que os conceitos que a nova legislação emprega são demasiadamente abertos e dão margem às mais diversas interpretações. Expressões como “procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos”, “sem estrita necessidade”, “situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização” e a própria “revitimização” permitem inúmeras compreensões.
O que é, afinal, um procedimento “desnecessário”, considerando os recursos que a defesa dispõe para formar o acervo probatório em caso de acusado de crime violento? Seria “desnecessário” ou “invasivo” submeter a vítima a exame de corpo de delito? Ou à perícia psicológica? Deveriam o Ministério Público e o Juízo, em casos como esse, intervir? E mais, ainda que advogados particulares não sejam sujeitos ativos dos delitos dispostos nessa legislação, estariam os defensores públicos sujeitos a responderem por “violência institucional” se assim agirem em prol da defesa de seus assistidos? Há muitas – e importantes – dúvidas que a amplitude dos conceitos empregados na normativa deixam em aberto.
Expressões incertas comumente levam a interpretações mais abrangentes, o que é sempre perigoso, em termos de adesão ao princípio de determinação/taxatividade que orienta o Direito Penal. Uma “situação potencialmente geradora de sofrimento ou estigmatização”, afinal, pode ser qualquer coisa – ou nada. A “estigmatização” de que trata a lei pode decorrer de inúmeros fatores, até mesmo não relacionados à conduta potencialmente criminosa, e o “sofrimento” é, por seu turno, sentimento individual, particular a cada indivíduo que assim interpreta em seu íntimo. Estes, é claro, são apenas alguns dos exemplos decorrentes da imprecisão do legislador na redação do dispositivo.
Para além da falta de clareza da legislação, deve se levar em conta que o art. 1º, §1º, da Lei de Abuso de Autoridade prevê um elemento subjetivo especial para a consumação da conduta delitiva referente à “violência institucional”, qual seja “quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. É dizer, somente se consumará o novo tipo penal que aqui se analisa quando verificada a especial finalidade de agir – o que, na prática, é de difícil, senão impossível, constatação, tornando a normativa inócua do ponto de vista de efetivação da punição.
Por outro lado, apesar das impropriedades da nova legislação, o ordenamento jurídico brasileiro, muito antes da Lei em comento, já previa institutos que resguardam e tutelam vítimas ou testemunhas especialmente vulneráveis, a partir de mecanismos que se prestam a mitigar eventual “sofrimento” incutido pelo curso do processo. A Lei 13.431/2017 (Estatuto da Criança e do Adolescente), por exemplo, em seus artigos 7º a 12, trata da escuta especializada e do depoimento especial[2] de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Já a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), prevê, em seu art. 10-A, §§1º e 2º, o depoimento especial de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, com diretrizes a serem seguidas pelas autoridades na condução de investigações e processos relacionados que digam respeito a mulheres em situação de vulnerabilidade doméstica.
De todo modo, constata-se que a legislação que incluiu novo tipo penal à Lei de Abuso de Autoridade, embora tenha como pano de fundo motivo de salutar importância, deixou de considerar questões relevantes atinentes aos próprios princípios que regem a condução de investigações e processos criminais.
Afinal, o processo penal tem por escopo justamente a reconstrução histórica do fato potencialmente criminoso, para que se possa verificar se determinada ação constitui crime e, em caso positivo, para que se aplique uma sanção a quem o houver cometido[3].
Essa reconstrução histórica dos fatos, em um sistema acusatório, tem por característica justamente o princípio dialético, como meio de obtenção da melhor verdade possível. Portanto, o processo penal acusatório não pode privar-se do mecanismo racional concebido pela união incessante de contrários (tese e antítese), representada pela efetivação de um contraditório objetivo e materializado, no âmbito da prova oral, pela cross examination, sob pena de negar-se a si mesmo.
A investigação e a condução de um processo criminal pressupõem a repassagem dos fatos e a produção de provas – incluindo, aí, a oitiva da vítima, de eventuais testemunhas, a produção de prova pericial e documental, e o que mais se fizer necessário para a elucidação do caso concreto -, o que, naturalmente, pode causar sofrimento aos envolvidos. Daí, para a assunção de que um questionamento mais duro da defesa não coibido pelas autoridades, ou a requisição de perícia específica, ou quaisquer outros exemplos semelhantes, podem vir a configurar “violência institucional”, ante à caracterização de eventual “revitimização” é uma linha muito tênue, da qual se deve afastar.
O erro, evidentemente, não está em se buscar humanizar o tratamento concedido a vítimas e testemunhas em processos e investigações (o que sempre deverá ser incentivado e visado), mas sim na tentativa de solucionar problemática estrutural, decorrente do machismo socialmente institucionalizado, a partir da criação de novo tipo penal não efetivo ao que se propõe, mas potencialmente apto a embaraçar o exercício do contraditório e da ampla defesa, o que, por óbvio, deve ser veementemente desestimulado.
[1] A título de exemplo, colacionam-se precedentes: STJ, AgRg no AREsp 1.594.445, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, J: 06/02/2020; STJ, HC 537.233, Rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo, Quinta Turma, J: 21/11/2019; STJ, AgRg no AREsp 1.275.084, Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, J: 28/05/201; STJ, AgRg no AREsp 1.446.586, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, J: 21/05/2019, STJ, AgRg no AREsp 1.103.678, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, J: 26/02/2019; TJDFT, 0001596-29.2019.8.07.0019, Rel. Jair Soares, Segunda Turma Criminal, DJe: 11/5/2020; etc.
[2] Nos termos do art. 7º da Lei 13.431, escuta especializada é “o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade”, enquanto, segundo o art. 8º da mesma Lei, depoimento especial é “o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária”.
[3] Tonini, Paolo, in “Manuale di Procedura Penale”, 5ª ed., Giuffrè Editore, p. 57.