Por Alvaro Souza e Nicole Mizrahi Dentes
Com a chegada de 2022, o Supremo Tribunal Federal divulgou, no canal de notícias do seu sítio eletrônico1, os temas com Repercussão Geral reconhecida (leading cases) que serão levados a julgamento no primeiro semestre do ano. Totalizando 38 casos, serão finalmente decididos, pelos Ministros da Corte Suprema Brasileira, temas que suscitam reiteradas e até mesmo politizadas discussões, para uniformização do entendimento jurisprudencial do Supremo, o que tem forte caráter indutor, senão por vezes determinante, das futuras decisões de juízes e desembargadores de todo o Brasil, em casos análogos.
O Supremo discutirá, por exemplo, a constitucionalidade da criminalização do ato obsceno em local público (“Tema 989”), e também a possibilidade de um tribunal de segunda instância determinar a realização de um novo júri, sob o fundamento da decisão supostamente “contrária à prova dos autos”, caso o réu tenha sido absolvido (“Tema 1087”), além de outros assuntos centrais dos variados ramos do direito.
Ganha especial destaque o “Tema 661”, cujo julgamento foi incluído na pauta de março. A temática aborda a “possibilidade de prorrogações sucessivas do prazo de autorização judicial para interceptações telefônicas”, discutida no âmbito do Recurso Extraordinário n° 625.263, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes.
Na realidade, o caso se iniciou no Tribunal Regional Federal da 4ª Região – TRF4, em 2006, quando a defesa de réus ali processados ingressou com habeas corpus, no Superior Tribunal de Justiça, por ter a Corte Regional reconhecido como legítimo o monitoramento telefônico que se estendeu por mais de dois anos, ininterruptamente, apesar de a Lei das Interceptações Telefônicas estabelecer o período de quinze dias para a duração das quebras de sigilo telefônico, prorrogável por igual período, somente por decisão judicial fundamentada, nos termos legais.
Mais especificamente, o caso concreto envolve o contexto da investigação que ficou conhecida como Caso Sundown, que tramitou no Juízo da Segunda Vara Criminal da Seção Judiciária Federal do Paraná, em que se apurou a prática de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, corrupção, descaminho, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro2.
A matéria foi levada ao Supremo Tribunal Federal somente em 2010, após ter, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, à unanimidade, concedido a ordem pleiteada “para reputar ilícita a prova resultante de tantos e tantos e tantos dias de interceptação telefônica das comunicações telefônicas”3. No Supremo, o caso teve sua repercussão geral reconhecida em 13 de junho de 2013.
A polêmica a ser decidida decorre da falta de clareza na redação da Lei de Interceptação Telefônica. Diz a Lei n° 9296/1996, por seu art. 5°, que a decisão que determinar a interceptação “será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”.
Para alguns, a leitura do referido artigo e o balizamento das interceptações telefônicas devem ser ponderados pelo peso da grave criminalidade que hoje é realidade no Brasil, de modo que o monitoramento das conversas há de ser aproveitado ao máximo, elastecendo-se os limites legais. Havendo uma autorização judicial prévia idônea (ainda que sucinta ou embasada em elementos abstratos), a renovação dos sucessivos prazos de quinze dias poderia, portanto, ser feita pelo tempo que fosse considerado necessário à elucidação do crime. Veja-se o seguinte trecho, extraído do Parecer da Procuradoria Geral da República, de junho de 2011, oferecido nos autos do habeas corpus que culminou no leading case do “Tema 661”:
“A interceptação telefônica, como é cediço, é um meio eficiente na busca de provas, comumente utilizado em crimes de alta complexidade, como é a hipótese destes autos. Caso prevaleça o entendimento adotado pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, inúmeras outras operações policiais em desenvolvimento estarão fadadas ao insucesso, não sendo possível prever o elevado prejuízo de recursos públicos e humanos investidos em tais operações. Sem falar, é claro, no prejuízo social que a anulação dessas investigações acarreta: condutas delituosas que atingem o patrimônio público e social, bem como a economia popular, permanecerão impunes ou dificilmente serão devidamente esclarecidas”.
Para outros, os termos legais devem ser considerados ante um princípio de razoabilidade, por se tratar de medida de obtenção de prova que mitiga o direito fundamental, constitucionalmente garantido, à privacidade e à intimidade do cidadão. A invasão à vida privada de alguém deve ser feita de forma excepcional, profundamente justificada, e da maneira mais estreita possível – daí o prazo expressamente previsto de quinze dias (renovável apenas mediante nova análise da necessidade de prolongação da medida), e a absoluta condenação a autorizações de monitoramento telefônico que se estendam por anos a fio.
A própria Constituição, quando previu, no Estado de Defesa, tratado em seu art. 136, hipótese de mitigação da garantia ao sigilo das comunicações telefônicas, determinou que o seu prazo de duração – que, no Estado de Defesa, é de 30 dias – só poderia ser prorrogado por uma única vez (art. 136, § 2º). Se nem no Estado de Defesa, decretado apenas em casos de absoluta instabilidade constitucional, o sigilo das comunicações pode ser violado por mais do que 60 dias, não é, de modo algum, razoável que, em situação de normalidade constitucional, autorize-se a mitigação dessa garantia por prazo indeterminado.
Objetivamente, portanto, o que o Supremo será chamado a avaliar é a possibilidade de se renovar indefinidamente a autorização de interceptação telefônica, sem um limite definido de prazo. Ou, em outras palavras, se garantias fundamentais inscritas na Constituição, como a da inviolabilidade das comunicações e a da obrigatoriedade de que toda ordem judicial seja devida e suficientemente fundamentada, podem coexistir com um cenário de interceptações telefônicas por tempo indeterminado, ainda que formalmente amparadas em sucessivas decisões judiciais.
Nos quase dez anos que se passaram desde que reconhecida a repercussão geral do “Tema 661”, a jurisprudência pátria vem caminhando, majoritariamente, pela permissibilidade das sucessivas prorrogações de interceptações telefônicas, a depender da complexidade do caso concreto, desde que cada uma dessas sucessões tenha sido previamente autorizada por decisão fundamentada. Com efeito, não são raros os casos em que o monitoramento telefônico dos alvos de uma investigação tenha perdurado por meses, ou até anos – o que vem sendo considerado legítimo, pelos juízes e Tribunais do país.
Tudo o que se tem exigido é que, observado o prazo de 15 dias previsto na Lei de Interceptações Telefônicas para a duração da medida, sua prorrogação seja, a cada quinzena, autorizada em nova decisão judicial, devidamente fundamentada. O problema é que o conceito de “decisão fundamentada” tem se deteriorado, flexibilizando-se cada vez mais os critérios para se considerar “fundamentada” a prorrogação das interceptações.
Ainda que não intencionalmente, essa praxe jurisprudencial, enquanto se espera por uma definição do “Tema 661”, traduz uma progressiva banalização do instituto da interceptação telefônica. É dizer: quando uma interceptação é sucessivamente renovada, sem que nenhum elemento novo tenha sido detectado nas próprias conversas até então interceptadas – quadro em que a renovação, portanto, apenas vai reproduzir os motivos da decisão originária –, estar-se-ia diante de um progressivo esvaziamento dos fundamentos suscitados pelo juiz na primeira determinação da violação do sigilo.
Não é surpresa que a interceptação de conversas telefônicas se transformou em poderoso meio de obtenção de provas. Sob o pretexto do “combate à criminalidade”, tolera-se, cada vez mais, que a quebra do sigilo das comunicações seja autorizada por decisões mal fundamentadas, geralmente pouco lastreadas nos elementos dos casos concretos. Se muitas decisões de interceptação já nascem com fundamentação frágil, tal fragilidade apenas se acentua à medida em que elas vão sendo renovadas sem a captura de qualquer diálogo incriminador.
A renovação de interceptações sem limite definido de prazo não atende a qualquer razoabilidade da duração da medida, mas apenas aos interesses das autoridades investigativas de ouvir as conversas do cidadão pelo tempo que quiserem, até captarem algum diálogo que lhes seja útil. Não se desconhece que a sua intenção seja nobre, mas é forçoso reconhecer a ineficiência que essa prática acarreta ao trabalho investigativo – é muito mais cômodo apenas ouvir indefinidamente as conversas das pessoas, do que buscar desvendar os crimes por outros meios de investigação.
No entanto, não se pode perder de vista que a violação da comunicação privada de um cidadão é medida extremamente invasiva, que implica a exposição das relações sociais e dos seus íntimos pensamentos, e que, portanto, deve ser estritamente regulada e controlada, para que não extrapole os limites do mínimo necessário ao interesse público de proteção da ordem social. A respeito da gravidade do tema, Tércio Sampaio Ferraz Jr.4 comenta que:
“No que tange a intimidade, é a informação daqueles dados que a pessoa guarda para si e que dão consistência à sua pessoalidade – dados de foro íntimo, expressões da auto-estima, avaliações personalíssimas com respeito a outros, pudores, enfim dados que, quando constantes de processos comunicativos, exigem do receptor extrema lealdade e alta confiança, e que, se devassados, desnudariam a personalidade, quebrariam a consistência psíquica, destruindo a integridade moral do sujeito”.
Todos esses pontos deverão ser trazidos e amplamente debatidos pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no próximo mês de março, por ocasião do julgamento do Tema de Repercussão Geral 661, quando se espera que seja reconhecida a inconstitucionalidade das prorrogações por tempo indeterminado de interceptações telefônicas.
Mas, a par de toda a discussão jurídica sobre a prorrogação indefinida das interceptações, que não deixa de ser profundamente relevante e necessária às investigações policiais e aos processos criminais delas decorrentes, não se pode deixar de considerar que o caso a ser julgado já se estende por quase duas décadas. Se a repercussão geral da matéria foi reconhecida em 2013, quase dez anos atrás, o que se diga dos eventos que originaram o caso em discussão, passados nos primeiros anos do milênio.
São incontáveis as inovações tecnológicas, e especialmente, as alterações nas formas de telecomunicação havidas ao longo desse período. Há que se dar destaque, aqui, à popularização das formas de troca de mensagens instantâneas, como mensagens de texto (SMS e MMS); também, posteriormente, à criação de aplicativos como o WhatsApp e Telegram, inclusive com a funcionalidade de chamadas (até de vídeo ou com múltiplos interlocutores) de forma rápida, fácil e acessível.
Daí a conclusão de que o cenário das telecomunicações – ante às inovações tecnológicas e aos novos meios disponibilizados aos cidadãos – era um na época da redação e da aprovação da Lei n° 9296/1996; era outro quando proferida a decisão que reconheceu se tratar, o caso do “Tema 661”, de matéria com repercussão geral; e é, agora, um terceiro diferente, quando os Ministros do Supremo finalmente julgarão a matéria.
E debater, em 2022, a efetividade e a razoabilidade das medidas de monitoramento de conversas telefônicas, como meio de obtenção de prova processual penal, considerando-se, somente, as conversas faladas ao telefone, chega a ser até anacrônico.
É preciso ter claro que, hoje em dia, não só pela palavra falada se comunica algo ao telefone. Há formas outras de comunicação, realizadas através dos terminais de telefonia, fixa ou móvel, e que devem se incluir no mesmo espectro de proteção, legal e constitucional, conferida aos “diálogos e conversas” telefônicos.
Esse conteúdo comunicacional fica especialmente evidente em se tratando das mensagens instantâneas. Fundamentalmente, ler as mensagens que escreve ou recebe em seu celular, é o mesmo que escutar as palavras que o usuário fala em seu aparelho. Da mesma forma que na interceptação das conversas telefônicas, o acesso às mensagens de texto permite, à autoridade estatal, conhecer o conteúdo dos atos de comunicação do indivíduo – fica-se sabendo o que ele conversou e com quem, quer o tenha conversado oralmente ou por escrito.
Mas há outras formas de comunicação telefônica menos óbvias, mas igualmente relevantes. Hoje, é possível saber, a partir do terminal telefônico de um indivíduo, os lugares que ele frequenta ou por onde passa. Também é possível, sem ouvir ou ler as suas conversas, extrair dos seus registros telefônicos uma relação completa de todos os seus interlocutores, da frequência com que se comunicam, e da duração dessas chamadas.
Esses tipos de informação inegavelmente traduzem algo da vida privada do indivíduo, e deveriam merecer a mesma proteção hoje conferida às conversas telefônicas tradicionais. No entanto, ainda não houve, seja por parte do legislador, seja nos Tribunais Brasileiros, seja em meio à doutrina, uma discussão mais profunda acerca da necessária atualização dos conceitos envolvidos no fenômeno da comunicação telefônica e sua interceptação.
A falta de conformação jurídica das novas maneiras de comunicação acaba lançando o cidadão em um cenário de profunda insegurança, pois não são raras as vezes em que as autoridades investigativas interpretam que “comunicação telefônica” seria apenas a palavra falada ou, no máximo, a escrita ao telefone. Outras formas de comunicação, como as informações de localização e os registros de chamadas são – equivocadamente – enquadrados, por esses intérpretes, como meros “dados cadastrais”, para cujo acesso pelas autoridades a Lei nem exige autorização, nem estipula um prazo de duração.
Quando, na verdade, por se tratarem, sim, de formas de comunicação telefônica – formas de o sujeito expressar a sua intimidade, pelos lugares que frequenta e pelas pessoas com que se relaciona –, essas outras categorias de informação sobre o usuário de telefonia deveriam se sujeitar aos ditames da Lei n° 9296/1996: só poderiam ser acessadas mediante autorização judicial fundamentada, e apenas pelo prazo legalmente previsto de 15 dias – o qual, espera-se, o Supremo venha a firmar que não pode ser prorrogado indefinidamente.
Assim, é relevantíssima a decisão que será tomada, pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do “Tema 661”, pautado para março. Mas, definir se as interceptações telefônicas podem ou não ser indefinidamente renovadas não esgotará as polêmicas que esse meio de obtenção de prova suscita, atualmente, no meio social. É preciso que se lute pelo próximo passo, para além da definição do tempo de duração das interceptações, pela atualização do próprio conceito de comunicação telefônica.
2 TRF4 – HC 2006.04.00.031493-8, Rel. Des. Maria de Fátima Freitas Labarrére, julgado em 24/10/2006.
3 STJ – HC 76.686/PR, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 09/09/2008, DJe 10/11/2008.
4 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o Direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. In: http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/28 , p. 04.