Por Eduardo Maneira e Odel Antun
A relação jurídica entre Fisco e contribuinte, que tem por objeto o pagamento de tributo, é denominada de obrigação tributária. Ocorrido o fato que a lei qualifica como fato gerador, o Fisco (sujeito ativo) passa ter o direito de exigir do contribuinte (sujeito passivo) o pagamento do tributo – objeto da obrigação. O dever do contribuinte de pagar o imposto (espécie de tributo), decorre de sua posição de sujeito passivo da obrigação tributária.
Assim, se alguém presta serviços, deve pagar ao município ISS; se recebe salários, aluguéis ou juros, deve pagar à União Imposto de Renda e se vende mercadorias ou presta serviços de comunicação e de transporte intermunicipal deve pagar o ICMS aos Estados. Neste sentido, o ICMS é um imposto como outro qualquer. O fato dele ser um imposto sobre o consumo e plurifásico (a mesma mercadoria pode ser vendida várias vezes) exige que a sua apuração obedeça a regras específicas para evitar a sua incidência cumulativa.
Ou seja, contra a sua incidência em cascata ou cumulativa, adota-se a regra da não-cumulatividade, que permite descontar na operação seguinte o que foi pago na operação anterior. Para implementar-se a não-cumulatividade, fala-se em repercussão jurídica do ICMS, que nada mais é que o destaque em nota fiscal do imposto incidente em cada operação para fins de compensação da operação anterior com a seguinte.
Por exemplo, se o comerciante compra uma mercadoria por R$ 200, esta mercadoria está acobertada por uma nota fiscal destacando o ICMS no valor de R$ 24 (caso a alíquota seja, por exemplo, de 12%). Revendendo a mesma mercadoria por R$ 300,00, o comerciante irá emitir uma nota fiscal destacando o ICMS de R$ 36 (12% sobre os R$ 300), mas, por força da não-cumulatividade irá recolher somente a diferença entre o débito de R$ 36 e o crédito de R$ 24, isto é, R$ 12. Estão agora querendo tipificar como crime de apropriação indébita o atraso do pagamento ao Estado desta diferença de R$ 12, sob o argumento que este valor sempre pertenceu ao Estado. Nada mais equivocado.
Não se nega que contribuinte tem o dever de pagar R$ 12, objeto da obrigação tributária do ICMS, como tem o dever de pagar ISS aos municípios quando presta serviços e IR à União quando tem renda. Ora, uma coisa é questionar se o valor a ser recolhido do ICMS deve ou não integrar a base de cálculo para PIS e Cofins – discussão que envolve o conceito jurídico de receita própria ou receita de terceiros. Outra coisa muito diferente é dizer que a simples inadimplência da obrigação possa configurar crime de apropriação indébita.
Ressalte-se que a apuração do ICMS a pagar é cercada de questões polêmicas, como, por exemplo, a questão da inadimplência por parte do cliente do contribuinte. Explica-se: se o contribuinte vende a mercadoria, ele passa a ser devedor do ICMS, mesmo que ele não receba do seu cliente pela mercadoria. Muitas vezes, é a inadimplência do cliente que leva o contribuinte a não ter condições de pagar o imposto.
Em tempos difíceis, além da inadimplência de que o comerciante pode ser vítima, vários outros fatores se verificam como as vendas com margem de lucro muito reduzida, ou até mesmo sem lucro algum, uma vez que o preço da mercadoria é ditado por regras de mercado.
Ou seja, é inadmissível pensar que a inadimplência configura crime, por ser aquele valor do imposto um dinheiro desde sempre do Estado. Ora, a ficção jurídica criada em torno dos impostos sobre o consumo (sendo o ICMS a estrela maior) de que o imposto sempre deve repercutir no preço, não significa que o atraso no pagamento do imposto pode ser equiparado ao contribuinte assaltar os cofres do Estado. Nem mesmo o Estado credor assim considera, pelo contrário. Quantos não são os programas de parcelamento criados pelos Estados para contribuintes inadimplentes.
Apropriar-se de coisa alheia móvel não é o mesmo que deixar de recolher tributo devido, ou seja, o tributo devido não é, em hipótese nenhuma, coisa alheia da qual o contribuinte tenha se apropriado pelo inadimplemento do imposto. Este imposto, no caso o ICMS, não é coisa de terceiro, é obrigação de pagar ao Fisco. Ao deixar de adimpli-la, o contribuinte incorre em mora na sua obrigação tributária, mas isto não se confunde com se apropriar de alguma coisa que não lhe pertence. Ora, se não há fraude ou quebra de confiança, criminalizar o inadimplemento é o mesmo que permitir a prisão por dívida – o que é vedado pela Constituição.
O Direito Penal, por possuir em seu arsenal a pena privativa de liberdade, representa a mais incisiva forma de intervenção do Estado sobre a esfera de liberdade dos indivíduos e, por isso mesmo, apenas pode ser usado como último e extremo recurso na repressão a lesões mais graves a determinado bem jurídico, e apenas quando outros ramos do Direito não forem capazes de oferecer uma resposta satisfatória.
Esse princípio básico impõe que a pena deve se fundar na extrema necessidade. E isso não se trata de mera abstração ou de tecnicalidade. O respeito a regras basilares de civilidade repercute diretamente no nosso dia-a-dia.
Basta imaginar duas situações bastante corriqueiras: 1) Alguém atrasa o pagamento de um aluguel do apartamento onde vive e, com isso, é obrigado a pagar multas e juros de mora. Esse mesmo indivíduo, se persistir em uma inadimplência mais duradoura, está sujeito ao despejo por falta de pagamento; 2) Outro indivíduo, locatário de um imóvel, entrega ao seu neto determinado valor, pedindo-lhe para que lhe faça o favor de entregar a quantia ao senhorio, quitando o aluguel devido. Mas, o neto resolve enganar seu avô e embolsa o dinheiro para uso próprio.
Repare-se que na primeira situação, em que a questão não passa de um mero inadimplemento, as sanções do Direito Civil (multa, juros de mora, despejo) são suficientes para coibir a prática e restaurar as relações jurídicas. Já na segunda situação, o neto pratica o crime de apropriação indébita, pois passou a se portar como se fosse dono daquele montante que recebera apenas com a finalidade de fazer um favor ao avô/locatário. Ou seja, no primeiro caso, a mera falta de pagamento não pode ser criminalizada, porque a agressão ao bem jurídico “patrimônio” não foi tão drástica. Já o caso 2 requer uma resposta estatal mais dura, exatamente porque, à questão meramente patrimonial, soma-se uma quebra de confiança e uma má-fé. É este tipo de conduta que demanda a resposta penal em qualquer país que adote um Direito penal de fundação iluminista.
O contribuinte inadimplente, que apurou corretamente o valor devido de ICMS e o informou ao Erário, não se declara dono do valor do imposto, pelo contrário, reconhece-se devedor desse imposto perante a Administração. O contribuinte não estabelece qualquer relação ilegítima de propriedade em relação ao montante do tributo, mas justamente reconhece que o seu titular é o Estado.
Desde Montesquieu, tido por muitos como o primeiro a fixar bases para a construção de um Direito Penal garantidor das garantias individuais de raiz iluminista, o princípio da extrema ratio ou da ultima ratio é tido como basilar em qualquer sistema de um Estado democrático. No capítulo XIV de “O Espírito das Leis” o grande filósofo assinala que “toda pena que não derive da necessidade é tirânica. A lei não é um puro ato de poder; as coisas indiferentes, por sua própria natureza, não são de sua alçada.”.
Todos nós conhecemos, ou somos vizinhos, amigos ou parentes de contribuintes do ICMS. Eles certamente já deveram, devem ou irão dever ICMS pelos mais diversos motivos. Por deverem este imposto não podem ser tratados como criminosos, porque não são.
*Eduardo Maneira, advogado, presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB e professor de direito tributário da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ
*Odel Antun, advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico e sócio do escritório Podval, Antun, Indalecio, Raffaini, Beraldo e Advogados
Artigo publicado em O Estado de São Paulo.