Por Alice Kok
A pandemia causada pelo Coronavírus afetou, em maior ou menor grau, todas as esferas da sociedade e os setores da sua economia. Como não poderia deixar de ser, o Judiciário brasileiro também precisou incorporar mudanças significativas em seu funcionamento. Inicialmente, com fóruns fechados e servidores trabalhando remotamente, o atendimento ao público se deu exclusivamente por telefone e e-mail. Processos físicos foram, em parte, com o passar dos meses e sem perspectiva de retomada à normalidade, digitalizados. Audiências e julgamentos, antes realizados presencialmente nos fóruns e tribunais, passaram a ser conduzidos pelos magistrados telepresencialmente, por videoconferência.
Todas essas mudanças, embora necessárias diante da crise sanitária sem precedentes que enfrentamos, impactaram diretamente a vida de servidores, magistrados, advogados e, sobretudo, jurisdicionados. No presente artigo, analisaremos o especial efeito causado a investigados e réus em inquéritos e processos criminais que foram – e continuam sendo – submetidos a seus atos, audiências de custódia, audiências de instrução, interrogatórios e julgamentos, de forma virtual, em possível afetação aos princípios de oralidade e de direito ao contraditório e à defesa.
Nesse contexto, destaca-se que, em julho de 2020 – há mais de um ano, portanto –, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou resolução permitindo e fixando critérios para a realização de audiências e outros atos processuais por videoconferência em processos penais e de execução penal durante a pandemia da Covid-19. O objetivo da Resolução nº 329/2020[1] foi, nos termos de seu art. 3º, dar continuidade à prestação jurisdicional, condicionando a realização de atos telepresenciais à decisão fundamentada do magistrado.
Ainda, segundo a resolução, a audiência poderia não ser realizada, caso alegada impossibilidade técnica ou instrumental de participação por algum dos envolvidos – como seria, por exemplo, caso de testemunha idosa sem acesso aos meios tecnológicos necessários. Nestas hipóteses, determina o art. 10º da referida Resolução que, quando informado que o réu, ofendido e/ou testemunha não dispõem de recursos adequados para acessar a videoconferência, pode o magistrado, em casos urgentes, autorizar, por decisão fundamentada, medidas excepcionais para viabilizar a oitiva, desde que respeitadas as normas constitucionais e processuais vigentes.
Dispõe, a mencionada Resolução, ademais, que os atos processuais realizados de maneira virtual devem observar, necessariamente, os princípios constitucionais inerentes ao devido processo legal e a garantia do direito das partes, especialmente: (i) paridade de armas, presunção de inocência, contraditório e ampla defesa; (ii) participação do réu na integralidade da audiência ou ato processual; (iii) oralidade e imediação; (iv) publicidade; (v) segurança da informação e da conexão, com adoção de medidas preventivas a falhas técnicas; e (vi) o direito da defesa em formular perguntas diretas às partes e a testemunhas.
Acompanhando o que dispôs o Conselho Nacional de Justiça, os Tribunais Pátrios vêm, ao longo dos meses subsequentes, estabelecendo balizas para a realização de audiências, julgamentos e outros atos de forma telepresencial. A título de exemplo, o STJ, em setembro de 2020, denegou a ordem do habeas corpus 590.140, estabelecendo que a audiência de instrução realizada por videoconferência durante a pandemia causada pelo coronavírus não configura cerceamento de defesa. Na oportunidade, o Ministro Sebastião Reis Júnior destacou que seria necessário viabilizar a continuidade da prestação jurisdicional e, ao mesmo tempo, garantir a preservação da saúde de magistrados, agentes públicos, advogados, além de usuários do sistema de justiça em geral. Ressaltou, também, ser indispensável, nos atos realizados por videoconferência, respeitar as garantias penais e processuais penais:
“As audiências devem buscar a máxima equivalência com os atos realizados presencialmente, respeitando a garantia da ampla defesa e o contraditório, a igualdade na relação processual, a presunção de inocência, a proteção da intimidade e vida privada, sobretudo em caso de segredo de justiça, a efetiva participação do réu na integralidade da audiência ou ato processual e a segurança da informação e da conexão”[1].
Ocorre, todavia, que a despeito do que estabeleceram o CNJ e o STJ na resolução e precedente supramencionados, a audiência de instrução e julgamento virtual causa restrições significativas às referidas garantias do procedimento probatório, especialmente quando consideramos a imediação – que pode ser interpretada como a interação comunicativa contínua entre juiz, partes e testemunhas, para que o julgador tenha conhecimento sobre as alegações das partes e as provas orais -, o contraditório e o direito ao confronto.
Sim, pois, ainda que os atos realizados por videoconferência guardem semelhança com os atos presenciais e constituam um bom substituto diante da situação excepcional que vivemos, não há como se negar que podem, também, impactar diretamente na forma como a prova é produzida, ocasionando eventual prejuízo à defesa.
É que, tomando como exemplo audiência de instrução realizada de forma 100% virtual – isto é, com todos os participantes em locais distintos -, tem-se diversas situações possivelmente problemáticas envolvendo, por exemplo, a exibição de documentos, o reconhecimento de pessoas, a ausência de comunicação direta entre advogado e cliente, a eventual dificuldade em contestar perguntas da parte adversa, a impossibilidade de se assegurar a incomunicabilidade entre testemunhas, sem falar, quando estamos diante de processos criminais, na relevância da decisão que será tomada a partir da prova (precariamente) produzida.
Ressalta-se, nesse ínterim, que ao acusado em processo criminal é garantido o direito à presença em todos os atos processuais. Esse direito deriva do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos:
Art. 14, III, d, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU: “toda pessoa acusada de um delito terá direito a estar presente no julgamento”.
Art. 8.º, 2, d e f da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (da OEA): “direito do acusado de defender-se pessoalmente”.
Tal garantia contempla o direito de confrontação com as vítimas e testemunhas, bem como o direito de compreender todos os atos praticados durante o processo, para que seja possível exercer devidamente o contraditório. Embora o acusado, no sistema jurídico brasileiro, não possa dirigir perguntas às testemunhas ou vítimas diretamente, pode fazê-lo por intermédio de seu defensor constituído – daí a importância, também, de se assegurar a comunicação livre e direta entre advogado e cliente, o que não é viável quando se encontram em locais distintos, conectados apenas por uma tela.
E, muito embora, tratando-se de interrogatório, a legislação brasileira já previsse a possibilidade de ouvir o acusado de forma telepresencial, nas hipóteses previstas no art. 185, §2º do Código de Processo Penal – exclusivamente em caso de réu preso, quando necessário (i) prevenir risco à segurança pública; (ii) viabilizar a participação do réu, se existir relevante dificuldade para seu comparecimento (enfermidade ou outra circunstância pessoal); (iii) impedir a influência do réu no ânimo da testemunha ou da vítima; ou, ainda, (iv) responder à gravíssima questão de ordem pública -, tal medida deveria ser aplicada em caráter excepcional, e não como regra.
Mesmo nas hipóteses acima estabelecidas, o interrogatório por videoconferência já comporta críticas. Primeiro, pela imprecisão do legislador na definição dos casos em que a oitiva por videoconferência estaria justificada. Segundo, porque, conforme explica Aury Lopes Jr., “quando se determina o interrogatório por videoconferência do réu preso, ele não é conduzido à audiência e, portanto, é impedido de assistir a toda a instrução”[3] e, a única forma de atenuar tal prejuízo, é não observar o princípio da unidade da audiência de instrução e julgamento:
“Somente assim o réu poderá participar e acompanhar alguns atos da instrução. Do contrário, quando a lei for cumprida e a audiência for única, ser-lhe-á subtraída toda a possibilidade de participar do processo”[4].
A par destas questões, vê-se também que, no atual modelo, o controle da gravação da audiência para oitiva das testemunhas e dos réus, bem como a disponibilização da respectiva mídia digital são reservados exclusivamente ao Judiciário, não havendo como as partes garantirem que o ato será integralmente gravado e disponibilizado. Há relatos, por exemplo, de processos nos quais, realizada a audiência de instrução, foram disponibilizadas à defesa gravações tão somente dos depoimentos testemunhais, e não da integralidade do ato, a despeito de que, entre as oitivas, haviam sido feitos importantes apontamentos pelas partes, que não constaram nas gravações, tampouco na ata de audiência, acarretando grave prejuízo.
Já no caso de julgamentos em 2º grau, ou em Tribunais Superiores, realizados de forma telepresencial, o prejuízo pode, de fato, não ser tão evidente, quando assegurada a possibilidade de realizar sustentação oral nas hipóteses regularmente previstas. É possível, contudo, verificar eventual dificuldade em transparecer emoções ou prender a atenção dos julgadores, mas as implicações decorrentes não são, prima facie, prontamente dedutíveis. E, por mais que o prejuízo não seja tão explícito quanto em outros casos, a exemplo das audiências de instrução e interrogatórios realizadas por videoconferência, também nestes julgamentos nos Tribunais haverá, sempre, o risco de falhas ou até mesmo perdas de conexão, que podem, eventualmente, comprometer o ato.
Todavia, no que concerne à realização de audiências de custódia por videoconferência, o prejuízo é patente. Instituídas em todo o país em 2015, as audiências de custódia promovem o encontro entre a pessoa que acabou de ser presa e o juiz, para avaliação da legalidade da prisão e da necessidade de sua manutenção, bem como permitem a verificação de ocorrência de tortura e maus-tratos no ato da prisão. Ou seja, é a audiência de custódia que possibilita ao preso apontar eventual violência sofrida, sendo o contato visual indispensável para a avaliação dos sinais físicos e emocionais deixados por uma agressão – dificilmente verificáveis em uma audiência conduzida telepresencialmente.
Tanto é assim, que a Resolução 329/2020, ao regulamentar a realização de atos por videoconferência, fez constar a vedação expressa à aplicação da regra às audiências de custódia previstas nos artigos 287 e 310 do Código de Processo Penal. Ao conduzir a 35ª Sessão Virtual Extraordinária do CNJ, na qual se aprovou a Resolução em questão, o Ministro Dias Toffoli, então presidente do Conselho, ressaltou, justamente, que a videoconferência é inadequada aos objetivos das audiências de custódia:
“Audiência de custódia por videoconferência não é audiência de custódia e não se equiparará ao padrão de apresentação imediata de um preso a um juiz, em momento consecutivo a sua prisão, estandarte, por sinal, bem definido por esse próprio Conselho Nacional de Justiça quando fez aplicar em todo o país as disposições do Pacto de São José da Costa Rica”.
Posteriormente, contudo, o próprio Conselho Nacional de Justiça passou a admitir, excepcionalmente, a realização das audiências de custódia por videoconferência, alterando o art. 19 da Resolução 329/2020 e estabelecendo as condições nas quais o ato pode ser realizado de maneira telepresencial:
“Art. 19. Admite-se a realização por videoconferência das audiências de custódia previstas nos artigos 287 e 310, ambos do Código de Processo Penal, e na Resolução CNJ nº 213/2015, quando não for possível a realização, em 24 horas, de forma presencial. (…)”[5].
Mais recentemente, o Ministro Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, também autorizou, via medida liminar na ADI 6841, a realização de audiências de custódia por videoconferência enquanto perdurar a pandemia, assentando que “é melhor que ela seja realizada por videoconferência do que simplesmente não seja realizada de forma alguma”. As justificativas por trás de tal autorização, contudo, mais parecem uma tentativa de mitigar direitos e garantias fundamentais do que propriamente assegurá-los, fazendo com que as audiências de custódia sejam realizadas fora dos parâmetros legais em oposição a sequer realizá-las.
Embora seja mais cômodo permitir que se realize a audiência de custódia por videoconferência, considerando a necessidade de deslocamento do indivíduo, recém preso em flagrante, até o fórum mais próximo, bem como todo o aparato judicial envolvido, deve-se ter em mente o que está em jogo: a liberdade de uma pessoa. Justamente pela relevância do ato, é que não se pode banalizá-lo a ponto de admitir sua realização por videoconferência em quaisquer hipóteses. Para além da análise do flagrante e dos fatos a ele atrelados, é indispensável que o juiz tenha contato com o preso, veja-o, interprete-o e o sinta – o que, convenhamos, não pode ser feito através de uma tela -, antes de decidir sobre algo tão gravoso quanto seu encarceramento.
É claro que precisamos ser flexíveis e compreender que vivemos uma situação sanitária excepcional e sem precedentes. Todavia, é justamente nestas situações que precisamos permanecer vigilantes quanto ao respeito às garantias constitucionalmente previstas, a fim de evitar abusos e arbitrariedades. Assim, ainda que se deva manter a possibilidade de realização de atos judiciais de maneira virtual, é necessário estabelecer balizas mais rígidas de controle, a fim de que as violações a garantias processuais mencionadas no presente artigo – e tantas outras que possamos vislumbrar – sejam, ao menos, mitigadas.
São inúmeras as questões que devem ser ponderadas para que atinjamos um modelo de atos judiciais virtuais próximo do ideal e mais semelhante ao presencial, como: de que maneira viabilizar a apresentação de documentos durante a audiência? Ou de que forma garantir, com algum grau de certeza, que as testemunhas permanecerão incomunicáveis durante o ato?
A título de exemplo, seria possível instituir a exigência de que a testemunha, em audiência de instrução, grave o local em que dará seu depoimento, bem como permaneça com o áudio e câmera ligados a todo o tempo, com o fito de assegurar que não haja outras pessoas presentes na sala capazes de orientá-la ou influenciá-la – e, mesmo assim, não há medidas viáveis que coíbam a utilização de whatsapp ou outro meio de comunicação virtual durante o ato.
Noutro giro, seria fundamental, também, estabelecer a exigência da gravação e disponibilização da integralidade da audiência ou, até mesmo, eventualmente, possibilitar que as partes realizem a autogravação dos atos, a fim de evitar que apontamentos importantes feitos em juízo sejam perdidos ou desconsiderados.
Enfim, para muitas destas perguntas, não há resposta clara, mas é necessário fazê-las para que, enquanto permanecer a necessidade de realização de atos judiciais por videoconferência em razão da pandemia causada pelo coronavírus, sejam plenamente asseguradas as garantias constitucionais que permeiam o direito de defesa. A viabilização de atos telepresenciais é medida excepcionalíssima, que deve perdurar tão somente enquanto absolutamente necessário, não devendo, sobremaneira, permanecer como herança de tempos tão sombrios, nos quais tantos direitos são mitigados e violados em prol da continuidade da prestação jurisdicional.
NOTAS
[1] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3400
[2] STJ, HC 590.140/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ªTurma, J: 22/09/2020.
[3] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. P. 721.
[4] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. P. 722.
[5] Resolução CNJ nº 357/2020.