Por Alvaro Augusto M. V. Orione Souza e Alice Pereira Kok
No início de abril de 2021, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal assentou que o magistrado não pode ser protagonista na inquirição de testemunhas no processo penal. Ao conceder o Habeas Corpus 187.035 para anular os atos realizados a partir de audiência de instrução, por entender que a postura da magistrada no caso concreto teria violado a redação do art. 212, CPP, o colegiado aduziu que a redação da norma deixa claro que a função do juiz na realização das oitivas é completiva e subsidiária, não lhe cabendo iniciar a formulação das perguntas.
Apesar de recente, o precedente traduz longa discussão doutrinária e jurisprudencial sobre o papel do magistrado na condução de audiências de instrução, bem como a ordem em que devem ser formulados os questionamentos às testemunhas – temas os quais propomos explorar no presente artigo.
Ao dar nova redação ao art. 212 do Código de Processo Penal, a Lei nº 11.690/2008 transformou por completo a forma de inquirir testemunhas no processo penal brasileiro. Se antes as perguntas das partes deveriam ser requeridas ao juiz, que as formularia à testemunha – modelo próprio do chamado sistema presidencial -, após a inovação legislativa, as perguntas devem ser formuladas pelas partes diretamente à testemunha, cabendo ao juiz, sobre os pontos não esclarecidos, complementar a inquirição, nos termos do parágrafo único do dispositivo. Confira-se:
Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.
Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.
Tal inovação, ao nosso ver, está mais alinhada com o sistema acusatório, no qual prepondera, na atividade probatória, a iniciativa dos interessados, deixando claras tanto a separação rígida entre juiz e acusação, quanto a paridade entre acusação e defesa1.
Aliás, as alterações ao Código de Processo Penal, previstas na Lei 13.964/2019, pretendem reforçar o caráter acusatório do processo penal brasileiro, e reforçam a incompatibilidade do modelo em que o juiz protagonizasse a produção da prova, ao afirmar, no novo art. 3º-A, que “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
Há quem argumente, é claro, que a iniciativa do juiz, na inquirição das testemunhas, não necessariamente se faria em substituição à acusação, podendo, o magistrado, se empenhar na inquirição de testemunhas favoráveis à defesa. No entanto, a experiência prática revela, infelizmente, não ser essa a hipótese mais frequente.
Além do mais, o que se precisa resgatar, quando se fala em sistema acusatório, é que a distinção entre acusatório e inquisitório transcende a mera separação entre as funções de acusar e julgar, e gira muito mais em torno da iniciativa na gestão da prova. Se a gestão da prova está a cargo do julgador – como no caso do juiz que protagoniza a inquirição da testemunha – temos um sistema que se aproxima mais do inquisitório. Se essa gestão está a cargo das partes, a proximidade é com o sistema acusatório. Portanto, a despeito de a Lei vedar atuação em substituição ao acusador, o ideal seria que o juiz não precisasse atuar em substituição a qualquer das partes.
O novo artigo 3º-A do CPP, é verdade, encontra-se suspenso, por meio da liminar concedida, pelo STF, nas ADIs 6.298, 6.299 e 6.300. Mas, mesmo assim, essa digressão a seu respeito é válida, por um lado, porque revela que a mitigação do papel do juiz, na inquirição das testemunhas, está em linha com a marcha evolutiva do processo penal, em direção a um modelo cada vez mais acusatório, marcha essa que, inclusive, já se traduziu em alteração da própria legislação.
Por outro lado, também, o art. 3º-A não inova em nada a disciplina da inquirição de testemunhas que já era prevista no art. 212. A afirmação expressa de que o modelo do nosso processo é acusatório apenas viria a reforçar que o protagonismo, na audiência de instrução, tem que ser das partes, e não do magistrado.
Dito isso, o art. 212 do CPP, à época de sua alteração, em que pese a clareza de sua atual redação, suscitou inúmeros questionamentos de operadores do direito: qual é, de fato, o papel do magistrado na inquirição de testemunhas? Não pode o juiz formular perguntas atinentes ao processo? O magistrado pode, ou não, iniciar a inquirição? E mais, caso existente a violação ao dispositivo legal, consistiria em nulidade relativa ou absoluta?
Para Guilherme de Souza Nucci, por exemplo, a inovação não alterou o sistema inicial de inquirição e quem deve começar a ouvir a testemunha é o juiz, agindo como presidente dos trabalhos e da colheita de prova:
“(…) absolutamente nenhuma modificação foi introduzida no tradicional método de inquirição, iniciado sempre pelo magistrado. Porém, quanto às perguntas das partes (denominadas reperguntas na prática forense), em lugar de passarem pela intermediação do juiz, serão dirigidas diretamente às testemunhas. Depois que o magistrado esgotar suas indagações, passa a palavra à parte que arrolou a pessoa depoente”2.
Para o autor, ainda, “mesmo para quem entenda ter havido modificação na ordem de inquirição, cuida-se de mera nulidade relativa, dependente da prova do prejuízo ocorrido à parte interessada”3.
No mesmo sentido é o entendimento de diversos magistrados de primeiro grau e Tribunais, segundo os quais a simples inversão da ordem das perguntas não altera o sistema acusatório, dado que o dispositivo legal não suprimiu a possibilidade de o juiz efetuar as suas perguntas, ainda que subsidiariamente. Assim assentou o STF quando do julgamento do HC 105.5384, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello e do HC 112.4465, de relatoria da Ministra Rosa Weber.
A própria Suprema Corte, no entanto, revisitou essa discussão no recente julgamento do HC 187.035, conforme exposto supra, com votos favoráveis à concessão da ordem sufragados, justamente, pelos Ministros Marco Aurélio e Rosa Weber, agora assentando, expressamente, que, nos termos do art. 212, CPP, cabe ao juiz, somente após a inquirição das testemunhas pelas partes, mero esclarecimento ou complementação às indagações já formuladas6.
O novel posicionamento da 1ª Turma do STF faz coro com a interpretação conferida de forma majoritária pela doutrina pátria à redação do art. 212 que, de forma acertada, entende pelo papel subsidiário do juiz na atividade probatória. Segundo Aury Lopes Jr., com a inovação legislativa introduzida pela Lei 11.690/08,
“o juiz deixa de ter o papel de protagonismo na realização das oitivas, para ter uma função completiva, subsidiária. (…) O juiz, como regra, questionará ao final, perguntando apenas sobre os pontos relevantes não esclarecidos. É, claramente, uma função completiva, e não mais de protagonismo. (…) O ponto nevrálgico é: poderá o juiz fazer perguntas para a testemunha, mas não como protagonista da inquirição. O mais difícil, com certeza, não é compreender a nova redação do artigo, mas abandonar o ranço inquisitório que ainda domina o senso comum dos atores judiciários”. (LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. pp. 746/747)
A análise parece acertada, afinal, o dispositivo legal é claro em estabelecer, em seu parágrafo único, que o papel do magistrado se resume a “completar” os “pontos não esclarecidos” da inquirição – o que pressupõe, por óbvio, que já exista uma inquirição em curso – protagonizada pela acusação e defesa – a ser “completada”.
Até porque, para além da clareza na redação do artigo, a intenção do legislador fica ainda mais clara quando comparamos o art. 212, CPP – referente à inquirição de testemunhas no procedimento comum -, com o art. 473, CPP – referente à inquirição de testemunhas no Tribunal do Júri -, verbis:
Art. 473. Prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária quando o juiz presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se possível, e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação.
§ 1º Para a inquirição das testemunhas arroladas pela defesa, o defensor do acusado formulará as perguntas antes do Ministério Público e do assistente, mantidos no mais a ordem e os critérios estabelecidos neste artigo.
Da leitura do caput do art. 473, CPP, bem como de seu §1º, resta claro que, nos processos de competência do Tribunal do Júri, as declarações do ofendido e das testemunhas serão tomadas primeiro pelo magistrado e, em seguida e nesta ordem, pelo Ministério Público, assistente de acusação, querelante e defensor. E, quando a testemunha for arrolada pela defesa, o defensor deverá formular os questionamentos também após o juiz, mas antes do membro do Ministério Público e do assistente.
Dessa forma, parece que o recente precedente do STF surge colocar uma pá de cal na discussão, assentando, mais uma vez e como não poderia deixar de ser, que não cabe ao magistrado, no processo penal, o protagonismo na inquirição de testemunhas e deixando estampada a intenção do legislador com a redação da norma. Como bem ressalta Aury Lopes Jr., “o mais difícil, com certeza, não é compreender a nova redação do artigo, mas abandonar o ranço inquisitório que ainda domina o senso comum dos atores judiciários”7.
Resta saber se, com mais essa importante decisão da Suprema Corte, os magistrados de primeiro grau que, ainda hoje, insistem no modelo ultrapassado incutido no sistema presidencialista, passarão a respeitar a redação do art. 212, do Código de Processo Penal, ou continuarão assumindo um protagonismo que não mais lhes é próprio.
NOTAS
2 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. pp. 849/850
4 “O disposto no artigo 212 do Código de Processo Penal não obstaculiza a possibilidade de, antes da formalização das perguntas pelas partes, dirigir-se o juiz às testemunhas, fazendo indagações” (STF, HC 105538/GO, Rel. Min. Marco Aurélio Mello, 1ª Turma, DJe: 10/04/2012).
5 “Do fato de o juiz ter perguntado primeiro e não ao final não decorre prejuízo às partes, ao contrário, da irregularidade, provém vantagem processual para a parte que pergunta por último, o que, em tese, lhe é mais favorável. Do fato de o juiz ter intermediado as perguntas das partes, decorre mero prejuízo à dinâmica da audiência. O prejuízo à celeridade não é suficiente para justificar a pronúncia de nulidade. O princípio maior que rege a matéria é de que não se decreta nulidade sem prejuízo, conforme o art. 563 do Código de Processo Penal. Não se prestigia a forma pela forma, com o que se, da irregularidade formal, não deflui prejuízo, o ato deve ser preservado” (STF, HC 112446/SP, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma, DJe: 08/05/2021).