Por Manuela Abreu e Alvaro Augusto Orione Souza
Ao longo da história, o exercício do poder punitivo passou por diversas transformações, refletindo em nuances no sistema de justiça. Em tempos remotos, as garantias fundamentais eram praticamente ausentes, resultando em práticas injustas, como caças às bruxas, sanções cruéis e torturas. Antes do estabelecimento do processo constitucional, formas como a “defesa privada” eram predominantes, onde o conflito entre as partes era resolvido pela força, evidenciando uma falta de estrutura jurídica na sociedade.
O Código de Processo Penal brasileiro de 1941, editado durante o Estado Novo, não representa uma evolução de todo satisfatória, em relação a esse regime de “solução pela força”, por refletir, ainda, uma inspiração fascista, irradiada no seu corpo de normas pelo momento histórico-político em que criado o CPP, e ainda não totalmente extirpada da sistemática processual penal brasileira. A Constituição de 1988 representou uma mudança significativa de paradigmas, ao adotar um sistema processual penal acusatório, afastando-se do modelo inquisitório original, do Código de 1941. No entanto, adaptações foram, e ainda são, necessárias, para alinhar essa legislação processual ultrapassada às novas diretrizes constitucionais.
A Lei n.º 13.964/2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, em que pese a crítica possível a alguns de seus institutos (como aqueles que implicaram endurecimento de penas e do regime prisional de seu cumprimento), procurou introduzir algumas reformas há muito tempo necessárias, para adequar o Processo Penal brasileiro às disposições da Constituição de 1988. Dentre essas reformas, incluiu-se o artigo 3º-A no CPP, reforçando a estrutura acusatória a ser seguida no processo penal brasileiro, no qual se diz “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
Após a promulgação da mencionada Lei n.º 13.964/2019, o Supremo Tribunal Federal apreciou a (in)constitucionalidade desse artigo 3º-A nas Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade n.ºs 6.928, 6.300 e 6.305 e decidiu que é constitucional a primeira parte do artigo, que diz ser acusatória a estrutura do nosso processo penal.
Neste sentido, é essencial compreender a distinção entre o sistema acusatório e o inquisitório para contextualizar essas críticas. Em síntese, no primeiro, as funções de acusar, defender e julgar são nitidamente separadas, promovendo imparcialidade do julgador, dentre outras formas, ao garantir que a acusação seja conduzida pelo Ministério Público[1]. Já o segundo, originário de regimes monárquicos absolutistas[2], é característico de modelos autoritários e concentra o poder nas mãos do juiz, possibilitando ao magistrado a gestão da produção probatória e a prolação da sentença, o que favorece, se não a arbitrariedade, ao menos a perda de imparcialidade daquele que julgará.
Portanto, no modelo acusatório existe a distinção entre quem julga (o Juiz ou Juíza) e quem acusa (o Ministério Público, em ação penal pública), o que difere do modelo inquisitorial, no qual “as funções de acusar, defender e julgar, estão reunidas na mesma figura”[3], sendo inexistente o respeito por princípios hoje reconhecidamente constitucionais, como o do contraditório e da ampla defesa, encontrando-se, o acusado, à mercê da arbitrariedade do julgador. Por essa razão esse modelo foi desacreditado, exatamente por incidir em um erro psicológico, que é: crer que uma mesma pessoa possa exercer funções tão antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar.[4]
Dessa forma, o modelo acusatório viabiliza a democracia processual, instituindo a descentralização do poder, em que o juiz aplica as normas apenas quando for provocado e as garantias do réu devem ser observadas, assim como sua defesa ser respeitada através do contraditório e da ampla defesa.[5]
Assim, segundo Nucci, o modelo acusatório possui quatro principais características: (i) separação das funções de cada órgão; (ii) o processo deve respeitar o princípio da publicidade dos atos processuais; (iii) o réu é um sujeito de direitos, com garantias constitucionais estabelecidas pela Constituição Federal e; (iv) a necessária imparcialidade do julgador.[6]
Todavia, persiste um resquício inconstitucional e inquisitorial do passado, no Código de Processo Penal. Trata-se do artigo 385, que permite que o juiz profira sentença condenatória, mesmo após o Ministério Público opinar pela absolvição do acusado. Tal disposição é incompatível com o sistema acusatório – o sistema de separação entre a função de quem julga, daquela de quem acusa – e, por isso, vem sendo alvo de críticas e questionamentos ao longo dos anos.
Se o Ministério Público, ao final do processo, ao final da produção das provas em contraditório, pede a absolvição do acusado, isso equivale, logicamente, a uma ausência de acusação. Se o órgão que julga não pode acusar, e se o órgão que acusa deixa de fazê-lo, justamente após ter contato com todas as provas produzidas ao longo do processo, é um imperativo lógico, o de que o juiz não poderia condenar, quando o acusador pede a absolvição.
Conforme afirma Aury Lopes Jr., a imposição de uma condenação, sem a formalização desse pedido pelo órgão acusador, mesmo após, inclusive, esse órgão de acusação pedir a absolvição, configura uma violação ao devido processo constitucional. O autor destaca que “o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém. Como consequência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo” e ressalta ainda que, “quando o Ministério Público retira a acusação, desaparece a pretensão acusatória, deixando ao juiz nenhuma outra opção senão absolver o réu. Se a própria instituição ministerial não está mais formulando a acusação, o juiz não tem legitimidade para proferir uma condenação.”[7]
Nesse sentido, condenar sem a formalização de um pedido de condenação equivale, portanto, a uma condenação arbitrária, sem pedido, configurando uma violação ao devido processo constitucional e ao Estado Democrático de Direito.
Essa conclusão deriva de um dos institutos mais basilares do direito processual, o da vedação ao julgamento ultra petita. No processo – em qualquer processo, e não apenas no penal – se a parte autora pede “A”, o juiz não pode deferir “A + B”. Se o fizer, estará indo além do pedido do autor (ultra petita), o que revela a sua perda de imparcialidade.
Por essa razão, o juiz não tem a prerrogativa de proferir uma condenação além do requerido pelo órgão acusador (ultra petita), sob o risco de transgredir o princípio da correlação entre a acusação, a defesa e a sentença. Se o Ministério Público pede a condenação por um crime na forma simples, o magistrado não poderia, a partir dos mesmos fatos e da aplicação do mesmo direito, proferir uma condenação pela forma qualificada (mais grave, e de pena maior) do delito.
Outro princípio que se aprende na primeira aula de Introdução ao Direito, no primeiro semestre de faculdade, é aquele segundo o qual “quem pode o mais, pode o menos”. Mas existe uma implicação lógica desse princípio, que embora elementar, não é tão difundida quanto a sua formulação original: se quem pode o mais pode o menos, quem não pode nem mesmo o menos, jamais poderá o mais.
Assim, se não é permitido, ao magistrado, o ato menor, que consiste em condenar além do pedido, também não é admissível o ato maior, ou mais grave: condenar sem nem ao menos qualquer pedido de condenação. Essa incompatibilidade com os padrões acusatórios democráticos ressalta a necessidade urgente de revisão e adequação do Código de Processo Penal, especialmente do seu art. 385, a fim de fortalecer os alicerces acusatórios do sistema processual penal brasileiro, bem como a própria Constituição Federal.
Por essa razão, a ANACRIM, Associação Nacional da Advocacia Criminal, propôs Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (n. 1.122), no dia 29 de janeiro deste ano, distribuída sob relatoria do Ministro Fachin, para que o Supremo Tribunal Federal reconheça a não recepção do artigo 385, do Código de Processo Penal, pela Constituição da República de 1988, “de modo que o juiz não está autorizado a condenar um acusado quando o Ministério Público pedir a absolvição, tampouco pode reconhecer circunstâncias agravantes que não foram alegadas pela acusação”.[8]
Na inicial da ADPF, a entidade questiona: “Se o dominus litis [titular da ação] não quer a condenação, por qual razão o juiz, que não é inquisidor, pode contrariar um pedido da parte legítima?”. Afinal se o Juiz condena mesmo com o pedido do Ministério Público pela absolvição, ele se aproxima da condição de inquisidor e insere o Estado numa condição de parcialidade, o que é teratológico e inadmissível, nos moldes adotados pela Constituição de 1988.
Agora, espera-se que o Supremo Tribunal Federal encerre essa longa discussão, colocando um fim na persistência de elementos inquisitórios no sistema processual penal brasileiro, em respeito ao princípio do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e da isonomia entre as partes, basilares do Estado Democrático de Direito.
[1] LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo Penal: Introdução Critica. 8 ed. São Paulo: SaraivaJur, p.74, 2022.
[2] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 29 ed. Barueri[SP]: Atlas, p.78, 2021.
[3] COSTA, Alessandra Abrahão; REIS NETO, Milton Mendes. A (in) constitucionalidade de decisão
judicial em prejuízo do réu diante de pedido absolutório do ministério público: análise do Artigo 385 do Código de Processo Penal. Revista da Faculdade de Direito da FMP, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 24-36, 2019. Disponível em: https://revistas.fmp.edu.br/index.php/FMP-Revista/article/view/125. Acesso em: 02 de Maio de 2022.
[4] 2 LOPES Jr, Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional: Volume I. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. p.68, 2007.
[5] 6 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 29 ed. Barueri[SP]: Atlas, p.79, 2021.
[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, p.58, 2021.
[7] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 20 ed., São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 1094/1095.
[8] STF – inicial da ADPF 1.122, fl. 13.