Por Helena Gobe Tonissi
Os médicos, ao tratarem das moléstias, sempre estiveram diante das expectativas dos pacientes e familiares. Nos últimos anos, porém, verificou-se uma expansão na esfera criminal de demandas envolvendo estes profissionais. Seja pelo volume de informações disponíveis, pela facilidade de acesso à Justiça ou pelo distanciamento da relação entre médico e paciente, dificilmente subsiste a figura do “médico da família” ou do médico como autoridade inquestionável.
Nesse cenário, considerando que os erros são verdadeiras consequências da atividade humana, e não sendo a medicina uma ciência exata, os profissionais de saúde estão sujeitos à responsabilização por uma miríade de questões e intercorrências [1], em alguns casos importando na responsabilidade penal. Razão pela qual, importante observar condutas passíveis de serem adotadas, de forma que os médicos sejam resguardados em eventuais investigações, bem como com intuito de evitar imputações penais tangentes ao exercício profissional.
Especialmente na esfera criminal, o erro médico não é constatado tão somente pelo descontentamento do paciente ou não atingimento do objetivo previsto com o tratamento. Aliás, não só porque não há promessa de êxito, mas também porque o recrudescimento exagerado da ação repressiva estatal obsta a inovação médica, que requer necessariamente a tomada de riscos pela adoção de caminhos diferentes [2].
Então, o erro médico punível na esfera penal será verificado quando houver a ocorrência das hipóteses de condutas culposas ou de violação da lex artis – conjunto de práticas e procedimentos médicos adequados. Portanto, compreendido quando presente a quebra do dever geral de cautela em relação ao paciente, e atuação ou omissão médica baseada em atitude imprudente, negligente ou imperita, que cause dano.
Quanto às modalidades culposas, destaca-se a definição de Francesco Carnelutti de que é prudente aquele que, baseado em sua experiência, age prevenindo eventos que possam derivar de sua ação; é perito aquele que, além de saber, sabe fazer; e é diligente aquele que age com a amor, evitando distrações e erros [3].
A possibilidade de que seja produzido um dano, decorrente da culpa do profissional, está presente em todas as etapas de atuação médica, do diagnóstico à execução do tratamento. Portanto, a atuação sem o devido cuidado, nestas hipóteses, levará à imputação dos resultados lesivos ao médico.
O erro pode configurar alguns tipos penais que só podem ser praticados por profissionais de saúde, chamados de crimes próprios: omissão de notificação de doença, exercício ilegal da medicina, falsidade de atestado médico, e a forma específica da infração de medida sanitária preventiva. Há também a possibilidade de serem imputados os crimes de: homicídio culposo, induzimento, instigação ou auxilio ao suicídio, lesão corporal culposa, provocação de aborto, omissão de socorro, condicionamento de atendimento médico-hospitalar, maus tratos, e o constrangimento ilegal, sendo que tais tipos penais podem ser praticados por qualquer indivíduo.
Portanto, a imputação de responsabilidade penal, nos casos de erro médico, exige prova inquestionável acerca da existência da culpa – negligência, imprudência ou imperícia – do médico. Ou seja, além da comprovação da materialidade e da autoria do delito, que a conduta tenha sido praticada violando o seu dever de cuidado, advindo dano ao bem jurídico, e que seja demonstrado o nexo de causalidade entre o atendimento prestado pelo profissional e o resultado danoso, não se admitindo presunções.
É neste contexto que o profissional da medicina está inserido que, tanto com a possibilidade de prevenir imputações, como de forma a mitigar as eventuais intervenções do Direito Penal, que é revelada a relevância da adoção do compliance criminal.
Embora o compliance seja conhecido por sua aplicabilidade em organizações e, no âmbito penal, voltado ao enfrentamento do crime de lavagem de capitais, não há limitação para sua implementação a um grupo de indivíduos em razão de sua atividade profissional [4]. Assim, trata-se de um programa que permite uma posição de contínua avaliação das condutas, de forma a evitar, por meio da implementação de mecanismos, práticas danosas sob a perspectiva criminal e promover de uma cultura que encoraje o cumprimento das leis, bem como do código de ética da profissão.
Uma das ferramentas mais relevantes para que o profissional se proteja da ação repressiva estatal é o preenchimento do prontuário médico de forma legível, com dados completos e acurados. Por ser o documento que reúne a evolução do tratamento, contendo informação de exames e prescrições, além das condutas adotadas pelos profissionais, serve de importante prova em eventual apuração de erro.
Na contramão dessa relevância, diversos estudos [5] evidenciam que os prontuários geralmente são eivados de falhas. Portanto, não basta que seja visto como uma obrigatoriedade ou formalização, mas que seja utilizado da forma correta, com descrições completas, explicativas e legíveis, organização de forma cronológica, sem abreviações, e com individualização da autoria das anotações. Até mesmo porque, ao alcançar o Poder Judiciário, são pessoas não habituadas com o conhecimento científico ali contido que o utilizarão para sanar dúvidas.
Mas não só, recomenda-se que seja anexado ao prontuário um questionário de anamnese preenchido pelo próprio paciente, que contemple informações de sua vida e histórico familiar.
Também integra a documentação que auxilia na redução dos erros e mitiga a intervenção sancionatória, o termo de consentimento informado, que consiste no processo de comunicação entre médico e paciente, possibilitando que o último possa escolher e manifestar sua autonomia frente ao tratamento, sempre ciente dos riscos, benefícios, alternativas, etc. Caso o profissional desrespeite o desejo do paciente, manifestado através do termo, poderá incorrer em constrangimento ilegal. Assim como o prontuário médico, para preservação de sua relevância, o termo deve ser bem elaborado, escolhendo-se por expressões precisas, garantindo que o paciente tenha sido adequadamente informado.
Para além do suporte documental, as red rules e a reporting culture, emprestadas de outros campos, podem ser adequadas ao cotidiano médico. Emprega-se a red flag rules através do estabelecimento de procedimentos essenciais que, caso não obedecidos, serão imediatamente paralisados, para que, em seguida, seja encontrada a explicação do ocorrido e, em último caso, responsabilização de quem violou a regra. Importa que sejam previsões memorizáveis e passíveis de serem implementadas por todos aqueles responsáveis e participantes do atendimento.
Já a reporting culture advém da teoria de James Reason, que considera o erro uma questão sistêmica. Propôs-se então a criação de um sistema de barreiras que, com a ocorrência de um evento indesejado, identificasse em que ponto o sistema falhou no impedimento da concretização do resultado danoso. Para tanto, é indispensável o desenvolvimento de uma cultura de transparência, acostumada com o relato das ocorrências, para que sejam aperfeiçoados os procedimentos, somada à adoção de mecanismos whistleblowing [6].
Estas duas ferramentas práticas exigem o incentivo da confiança e a noção de que há diferença entre comportamentos escusáveis e culpáveis. Ademais, são processos que combatem, pela determinação de barreiras capazes de serem aprimoradas com treinamento, supervisão e comunicação, situações locais e situacionais que instigam o erro médico. Não se trata de identificar para punir, mas implementar uma cultura de responsabilidade que atua pela evolução, em benefício dos pacientes e profissionais.
A fim de evitar o erro, a atuação médica deve estar pautada na avaliação e diagnóstico precisos, especialização e técnica apuradas, escolha da melhor opção de tratamento, oferecendo o menor dano possível à integridade do paciente. Nos casos práticos em que não seja possível atender aos parâmetros desejáveis, é dever do Estado verificar a legitimidade da responsabilização penal do profissional. E é justamente nessa seara que o compliance criminal atua, mitigando os riscos criminais relativos à atividade médica, evitando a investigação, auxiliando na condução daquelas existentes – seja pela demonstração da melhor estratégia de defesa, seja pelos subsídios que fornece -, assegurando assim distância da responsabilidade penal e fortalecendo a proteção do profissional e da organização (hospitais e clínicas).
[1] SCHAEFER MARTINS, Jorge Henrique. A responsabilidade penal por erro médico. Revista Jurídica da FURB, n. 3, p. 52, jun. 1998.
[2] SCHREIBER, Simone. Reflexões acerca da responsabilidade penal do médico. Revista da AJUFE, Brasília, v. 19, n. 63, p. 309-328, jan.-jun. 2000. P. 311.
[3] BILANCETTI, Mauro. La responsabilità penale e civile del medico. Padova: CEDAM, 2006. p. 715.
[4] GORGA, Maria Luiza. Minimizando riscos: compliance penal para o profissional da medicina. Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2016. p. 19.
[5] SILVA, Fábia Gama et. al. A qualidades dos prontuários relacionada ao perfil dos processos Éticos-profissionais. Gazeta Médica da Bahia, p. 11-18, jan.-jul. 2007. P. 12-13; PAVAO, Ana Luiza Braz et al. Estudo de incidência de eventos adversos hospitaleres, Rio de Janeiro, Brasil: avaliação da qualidade do prontuário do paciente. Revista brasileira de epidemiologia, São Paulo, v. 14, n. 4, p. 651-661, dez. 2011;
[6] Garantem a segurança de quem delata e a confiabilidade das informações.