Por Alice Pereira Kok e Nicole Mizrahi Dentes
De todas as áreas do direito, a penal deve ser entendida como a ultima ratio – ou seja, o último recurso do Estado na repressão de condutas socialmente indesejadas. Apenas quando outros ramos do ordenamento jurídico não forem capazes de oferecer uma resposta suficiente à lesão de determinado bem jurídico, é que se deve utilizar da sanção criminal, justamente em razão do elevado ônus que ela impõe às liberdades individuais dos cidadãos. Nas palavras de Nelson Hungria,
“as sanções penais são o último recurso para conjurar a antinomia entre a vontade individual e a vontade normativa do Estado. (…) ilícito penal é a violação da ordem jurídica, contra a qual, pela sua intensidade ou gravidade, a única sanção adequada é a pena, e ilícito civil é a violação da ordem jurídica, para cuja debelação bastam as sanções atenuadas da indenização, da execução forçada ou in natura, da restituição ao status quo ante (…)”1.
E dizer que o direito penal é a ultima ratio implica no desdobramento lógico de que nem todo ilícito é, necessária e automaticamente, um ilícito penal. A infração de normas fiscais, por exemplo, não traduz invariavelmente um crime tributário, já que, se assim fosse, equiparar-se-ia a mera dívida tributária a um crime e, o contribuinte que viesse a se ver em débito com o Fisco, a um criminoso, sonegador fiscal.
Dito isso, infelizmente, não raras são as vezes em que nos deparamos com a instrumentalização do direito criminal, para fins outros que não a repressão de um ilícito penal. Ou, em outras palavras, no que diz respeito a infrações de normas fiscais, não são incomuns os casos em que, a despeito de não haver a configuração de crime tributário propriamente dito, o Estado se utiliza do direito penal como mecanismo de cobrança dos débitos tributários. É dizer: o contribuinte que, por qualquer razão, tenha caído em situação de inadimplência fiscal – não necessariamente se utilizando de fraude ou qualquer outro artifício que indique a contumácia e a vontade livre e consciente de suprimir ou reduzir o tributo, elementos mínimos necessários para a possibilidade de configuração de conduta penalmente relevante – pode se ver processado ou investigado criminalmente por delito tributário.
Tal instrumentalização do direito penal para satisfação da arrecadação fiscal chega a ser confessada na própria legislação penal tributária. Exemplo disso é o fato de que, a teor do art. 14, da Lei 8.137/1990, do art. 34 da Lei 9.249/1995 e do art. 83, § 4º da Lei 9.430/1996, extingue-se a punibilidade do agente, quando ocorre o efetivo pagamento do débito – a indicar que o que se está visando a assegurar com a criminalização da conduta, em realidade, é a coleta do tributo.
E é justamente nessa maré de instrumentalização do direito penal no âmbito dos delitos fiscais que surgiu a Portaria PGFN nº 12072, publicada em outubro de 2021 e vigente desde o mês passado. A normativa da Fazenda Nacional se presta a estabelecer procedimentos de envio das representações para fins penais aos órgãos de persecução penal, e dispõe sobre a atuação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional na esfera criminal.
Ao assim fazer, contudo, viola frontalmente normas e entendimento jurisprudencial anteriormente vigentes, além de incorrer em impropriedades técnicas graves, conforme passaremos a analisar, não menos grave a de pretender a regulamentação, por um órgão da Administração Fiscal, de questões processuais penais – o que somente pode ser feito mediante alteração legislativa, pelo Congresso Nacional.
Logo de início, estabelece, a referida normativa, em seu art. 3º, que as representações para fins penais deverão ser encaminhadas aos órgãos de persecução penal em até 60 (sessenta) dias, a contar “do encerramento das diligências investigativas por parte da Procuradoria-Geral da Fazenda nacional, se necessárias”; ou “da ciência dos fatos, se não houver necessidade das diligências mencionadas no inciso I ou se mostrar conveniente e oportuno o encaminhamento imediato”. Nada dispõe, contudo, a respeito da necessidade de se aguardar a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente – matéria amplamente pacificada no STF, a partir da Súmula vinculante 24, e na legislação strictu sensu, a teor do art. 83, caput e §1º, da Lei 9.430/96, confira-se:
Súmula vinculante 24: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.
§ 1º Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento.
A previsão instituída por meio da Portaria é, em última análise, e justamente por força da Súmula Vinculante 24 e dos dispositivos legislativos acima mencionados, inócua, pois os órgãos de persecução penal – ainda que recebam a representação fiscal dentro do “prazo de 60 (sessenta) dias” estipulado pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – deverão aguardar a resolução no âmbito administrativo sobre a exigência do tributo, para só então dar início e prosseguimento a possíveis investigações de cunho criminal.
É dizer, mesmo que se possa aceitar a Fazenda Nacional conferir a si própria a discricionariedade para encaminhar, à autoridade policial e ao Ministério Público, as informações que achar pertinentes, imediatamente, sempre que “se mostrar oportuno e conveniente” – seja lá o que signifique “oportuno e conveniente” -, a medida se traduz a verdadeiro contrassenso, uma vez que os órgãos que receberão as representações para fins penais nada poderão fazer antes de efetivamente constituído o crédito tributário.
A escancarar a utilização do direito penal como instrumento para executar dívidas fiscais, o §2º do art. 3º da normativa prevê que o encaminhamento da representação “poderá, motivadamente, ser postergado até a efetivação das eventuais constrições requeridas nas ações exacionais, a fim de evitar a dilapidação patrimonial”, demonstrando o claro intuito de ver garantida a dívida fiscal – e não efetivamente investigado ou processado eventual crime tributário.
A Portaria PGFN nº 12072, inclusive, por seu artigo 5º, viabiliza, nos casos em que o Ministério Público entender pelo arquivamento de eventual representação fiscal para fins penais, que a própria Fazenda Nacional insista na possibilidade de ver o “crime” investigado e processado. Valendo-se da permissiva do artigo 28, do Código de Processo Penal, incluída pela Lei n° 13.964/2019 (Pacote Anticrime) e atualmente suspensa, a Portaria coloca a possibilidade de que a Procuradoria da Fazenda Nacional ofereça recursos para a reforma de determinações, do Ministério Público Federal, de arquivamento de representações fiscais, quando delas discordar.
Não sendo órgão de persecução penal, o único interesse da Procuradoria da Fazenda, em ver processado criminalmente o contribuinte, só pode ser o de obter a satisfação da dívida fiscal, mais uma vez evidenciando o desvirtuamento que se pretende, da persecução penal em mera ferramenta de cobrança tributária.
É de se notar, ademais, que, por diversas passagens da referida normativa, há nítida projeção da Fazenda Nacional na própria figura de vítima das condutas atentatórias ao recolhimento tributário, com a consequente possibilidade de atuar como assistente de acusação. É o caso, por exemplo, do dispositivo do artigo 6º, caput, da Portaria PGFN nº 12072, que permite que o Procurador da Fazenda Nacional solicite o acompanhamento, como assistente de acusação, de todo o trâmite de ação penal decorrente do envio de representações fiscais para fins penais, ou de quaisquer outras ações penais que envolvam lesões causadas à Fazenda Nacional. A mesma ideia é perceptível no artigo 7º do dispositivo, que permite a propositura de ações penais privadas subsidiárias das públicas, nos casos em que não houver sido intentada ação pública, no prazo legal, pelo órgão do Ministério Público.
Quanto a este ponto, vale lembrar que a legislação infraconstitucional acabou por aproximar, cada vez mais, a vítima da persecução criminal.
Com efeito, trata-se, o assistente de acusação, de figura secundária e acessória, sem a qual o processo ainda existe e prospera, a partir de iniciativa do Ministério Público, verdadeiro titular da ação penal. O art. 268, do Código de Processo Penal estabeleceu, então, taxativamente, que o ofendido ou seu representante legal poderá intervir como assistente do órgão Ministerial. Excepcionalmente, ainda, o ordenamento jurídico pátrio passou a admitir que outros órgãos ou entidades também fossem assistentes de acusação, como é o caso da CVM e do Banco Central, em crimes contra o Sistema Financeiro Nacional praticados no âmbito de atividade sujeita à disciplina e à fiscalização dessas autarquias; ou das entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, e das associações constituídas há pelo menos 1 (um) ano, todos especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor.
O instituto da assistência de acusação, portanto, é, como regra, pensado para dar voz àquelas vítimas que, normalmente, não a teriam, no curso da persecução penal, por não serem os titulares da ação penal pública – o que não é o caso do Estado, que já é, ele próprio, o titular da persecução criminal, por meio do Ministério Público. A partir dessa premissa teleológica, é absolutamente questionável que se confira, a pessoa jurídica de direito público, a possibilidade de se habilitar como assistente de acusação, em ação penal.
Isso porque, nos casos de crime praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado ou Município, a ação penal é de iniciativa pública, sendo o Ministério Público o responsável por defender os interesses do órgão eventualmente afetado. O Estado já é representado, na ação penal pública, pelo Ministério Público, sendo contrário aos ditames da proporcionalidade e da paridade de armas, que se admita um segundo ente estatal, na promoção da acusação contra o imputado. Assim, seria verdadeiramente incoerente admitir o ingresso da Fazenda Nacional como assistente de acusação nos delitos tributários. Nas palavras de Aury Lopes Jr.:
“(…) quem defende em juízo os interesses do órgão público afetado é o Ministério Público, sendo sem sentido (salvo para gerar desequilíbrio processual e contaminar o processo com o sentimento de vingança) admitir-se a assistência. Do contrário, teríamos de admitir que o Ministério Público é negligente na tutela do patrimônio público, o que seria um contrassenso”2.
Noutras palavras, admitir que a Fazenda Nacional assuma a figura de assistente de acusação, nas hipóteses de crime tributário, acabaria por desnaturar os princípios que regem o direito penal e processual penal, para salvaguardar o interesse puramente patrimonial do fisco – de ver arrecadado, pela via do processo criminal, o tributo supostamente devido.
Bem se reconhece que a execução de dívidas fiscais e, mais ainda, a integridade do patrimônio da Fazenda se revestem do mais alto interesse público. Tanto que, nessa toada, a Fazenda Nacional se põe como ente responsável pela fiscalização e regulamentação da arrecadação tributária, sendo-lhe cabível, e até necessária, a autuação na sanção administrativa daqueles contribuintes que não honrarem com os seus compromissos fiscais.
Disso não se pode, contudo, saltar para o entendimento de que seria legítimo o Poder Público se valer de todo e qualquer instrumento – principalmente o direito penal – como mecanismo coercitivo de pagamento de dívidas fiscais. Isso implicaria a própria deturpação das estruturas e princípios por que se deve pautar um sistema penal e processual penal que se pretenda democrático.
Iniciativas como a Portaria PGFN nº 12072 militam no sentido de agravar a confusão, cada vez maior, acerca da função constitucional da persecução penal, que não é a de servir de instrumento de cobrança de dívida tributária. Trata-se, a Portaria em questão, de mais um exemplo da instrumentalização indevida do direito penal, para servir a fins extrapenais, o que não se pode deixar de reprovar.
NOTAS
1 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 2. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958. v. VII. p. 178.
2 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2019. P. 767.