Por Odel Antun e Alvaro Augusto Orione Souza
Ao longo das duas últimas semanas do ano judiciário de 2019, o Pleno do Supremo Tribunal Federal julgou o Recurso em Habeas Corpus 163.334. Os debates se estenderam por nada menos do que três sessões, durante as quais diversos setores representativos da sociedade se fizeram ouvir, na qualidade de amici curiae.
Em jogo, estava a criminalização ou não do inadimplemento de ICMS próprio, regularmente declarado ao Fisco estadual. Em agosto de 2018, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, em decisão por maioria de votos, havia denegado a ordem, num HC impetrado pela Defensoria Pública de Santa Catarina, em favor de um casal de pequenos empresários denunciado pelo delito do artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/90. Aquele writ visava ao reconhecimento de que a conduta dos pacientes seria atípica, por terem eles, sem o emprego de qualquer espécie de fraude, apenas deixado de recolher ICMS devidamente declarado ao Fisco estadual.
Naquele HC, o STJ uniformizou o entendimento de suas duas turmas especializadas em Direito Criminal, no sentido de que seria típica, nos termos do artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/90, a conduta de deixar de recolher ICMS próprio (e não oriundo de substituição tributária), incorporado ao valor final do produto/serviço repassado ao adquirente/consumidor, ainda que regularmente declarado à autoridade fazendária.
Esse era o acórdão questionado perante o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por meio do RHC 163.334. Durante o julgamento, e pleiteando a reforma dessa decisão, contribuíram para o debate, ao lado da ilustre Defensoria Pública de Santa Catarina, recorrente, o Conselho Federal da OAB, a Associação Brasileira do Agronegócio, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo, e o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal.
Note-se que, de tão significativa a questão, entidades representativas dos três setores da atividade econômica nacional — agricultura, indústria e serviços — habilitaram-se nos autos, e esgrimiram robustas razões para que fosse revertido o entendimento firmado pela 3ª Seção do STJ.
Contudo, infelizmente, na tarde do último dia 18 de dezembro, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, denegou o recurso em Habeas Corpus, nos termos do voto do relator, ministro Roberto Barroso, que reconheceu como típica a conduta de não recolher o ICMS, ainda que próprio e devidamente declarado, sempre que presente o dolo de se apropriar do valor do imposto.
O acórdão ainda não foi publicado, para que se tenha conhecimento dos exatos termos dos votos de cada ministro. Ainda assim, do quanto verbalizado em Plenário, é possível, no interesse do debate científico, e com todo respeito ao entendimento firmado pela colenda maioria, tecer algumas considerações iniciais.
Como já tivemos oportunidade de demonstrar, tanto nos autos como em outros artigos publicados, a decisão do Superior Tribunal de Justiça padecia de graves equívocos e merecia reforma, na medida em que possibilitava a criminalização da mera inadimplência, ao arrepio de um Direito Penal fragmentário e subsidiário, fundado na proteção a bens jurídicos gravemente atingidos.
Se, como afirmou a corte especial, a apropriação indébita não exige fraude, exige, sim, quebra de confiança — a quebra de confiança é o que confere ofensividade à conduta, a fim de que seja legítima a sua incriminação. Transpondo-se o raciocínio para a análise do artigo 2º, II da Lei 8.137/90, tem-se que não poderia ser típica a conduta de quem deixa de recolher o ICMS próprio, devidamente escriturado, pois não se verifica, na hipótese, qualquer quebra de confiança por parte do contribuinte.
É preciso reafirmar que a conduta de declarar corretamente o imposto próprio, deixando, contudo, de recolhê-lo não se reveste da necessária tipicidade material, para que possa ser considerada crime. Afinal, o mero inadimplemento tributário não apresenta qualquer ofensividade que o torne digno de tutela penal, a qual deve, necessariamente, ser fragmentária. Esta continua a ser a posição mais coerente com um Direito Penal democrático, de intervenção mínima, de ultima ratio — mesmo diante do resultado do julgamento do RHC 163.334.
Não foi esse, contudo, o entendimento alcançado pela maioria dos eminentes ministros, no julgamento realizado no Órgão Pleno do STF.
Mas, para além de contestar os equívocos da decisão em comento, o mais urgente é que se entenda como fica, após o julgamento do RHC 163.334, o panorama com o qual deve se defrontar o contribuinte, na hipótese de não conseguir adimplir suas obrigações de ICMS.
Uma vez firmada, enquanto paradigma, a decisão do Supremo — de que incide no artigo 2º, II, da Lei 8.137/90, aquele que deixa de recolher o ICMS repassado no preço do produto ou serviço, desde que pratique a conduta com dolo de apropriação desse valor —, impende que se busque conformar essa decisão, o melhor possível, aos princípios reitores do Direito Penal.
Nesse sentido, numa análise preliminar, parece que a questão girará em torno da ressalva, manifestada no voto do relator, ministro Barroso, de que o crime se configurará somente se o agente tiver o dolo de se apropriar do valor do imposto. Essa foi a tese proposta como fechamento de seu voto, e aprovada pelo Plenário:
“O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º, II, da Lei 8.137/1990.”[1]
Sendo essa a tese acolhida pela maioria, o ponto indeclinável, na exegese, daqui para frente, do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90, deve ser o de que o inadimplemento do ICMS (ou de qualquer outro tributo) repassado no preço da mercadoria dará azo à tipificação do delito, única e exclusivamente nas hipóteses em que o contribuinte apresente a intenção de se apropriar do valor do imposto.
O crime do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90, exsurge, assim, do julgamento do RHC 163.334, com a nova roupagem que lhe foi dada pelo Supremo, como genuíno crime de resultado cortado (ou de tendência interna transcendente), espécie delitiva que consiste, nas lições de Cezar Roberto Bitencourt, “na realização de um ato visando a produção de um resultado, que fica fora do tipo”[2]. É dizer, os crimes de resultado cortado apresentam um elemento subjetivo maior do que o seu tipo objetivo. Além de realizar dolosamente o tipo objetivo, deve o agente possuir intenção que vai além da conduta objetiva.
São tipos penais em que “o legislador corta a ação em determinado momento do processo executório, consumando-se o crime independentemente de o agente haver atingido o propósito pretendido”[3]. Assim, segundo a tese formulada pelo ministro Barroso, adotada pela maioria, o artigo 2º, inciso II, claramente passou a exigir, para a tipificação do delito, um elemento subjetivo que vai além da conduta objetivamente descrita no tipo (“deixar de recolher tributo”) – o dolo de se apropriar.
Para tipificação desse crime, portanto, não basta mais o simples conhecimento e livre determinação do agente, no ato de deixar de recolher o tributo. Exige-se que o móvel da sua conduta seja, necessariamente, o dolo de se apropriar do valor do imposto. De modo que a alcunha de “apropriação indébita tributária”, antes criticada pela melhor doutrina — já que não se poderia falar em verdadeira similitude entre a conduta prevista no delito tributário e a apropriação do Código Penal — nunca foi tão pertinente, dado que a intenção de se apropriar passa a ser condição sine qua non para a configuração do delito.
Ironicamente, se, na decisão da 3ª Seção do STJ, essa aproximação, entre o delito tributário em questão e o crime de apropriação tradicional[4], tendia a favorecer interesses expansionistas do poder punitivo — pois visava a contornar a exigência de fraude, enquanto necessária à configuração dos crimes tributários — agora, à luz da nova conformação do tipo, determinada pelo Supremo, passa a ser justamente na exigência de manifesta intenção de apropriação do valor do tributo, que se deve buscar os novos limites dessa figura delitiva, impedindo-se que o mero inadimplemento se torne objeto de intervenção penal.
Com isso em mente, parece lógico que a intenção de se apropriar não está presente, por exemplo, na conduta do comerciante que deixa de recolher o tributo em razão de aguda crise financeira, que o tenha obrigado, digamos, a se utilizar do valor para o pagamento da folha salarial — exemplo suscitado da tribuna e acolhido pelo próprio ministro relator durante os debates, como de atipicidade por ausência de dolo. Na ausência de elementos mínimos, indicativos de que o contribuinte tenha deixado de pagar o imposto para se locupletar do seu valor, não é legítima a persecução penal, ou seja, já de partida, a exordial acusatória precisa descrever de que forma se teria materializado o dolo de apropriação do valor do imposto, bem como se fazer acompanhar de indícios mínimos da sua real existência, de modo a conferir justa causa à ação penal.
Não se está a exigir, já no oferecimento da denúncia, a prova cabal para a condenação, mas é, sim, absolutamente essencial, para o recebimento da ação penal, que os órgãos de acusação amealhem, na fase pré-processual, elementos concernentes à existência desse dolo de apropriação.
O dolo não se presume e, além de estar descrita a especial intenção de apropriação, elementos mínimos de prova devem ser produzidos em fase inquisitorial, a indicar a presença do dolo de apropriação dos valores não recolhidos.
Do contrário, na prática, se imporia ao contribuinte inadimplente o ônus de responder a processo penal, para comprovar sua inocência no curso a instrução em juízo, reduzindo o Direito Penal a instrumento de pressão e de cobrança e fazendo letra morta da própria presunção de inocência, que impõe à acusação o ônus probatório. Afinal, seguindo-se por esse caminho, todo devedor de tributo se verá automaticamente denunciado criminalmente, sujeito aos ônus, riscos e incertezas do processo, o que por certo exercerá, sobre ele, pressão para que pague o imposto, a fim de ver extinta a punibilidade.
Não se trata mais de arguir a inexigibilidade de conduta diversa para afastar a culpabilidade de quem “deixou de recolher” — arguição defensiva, de ônus probatório defensivo. Trata-se de se demonstrar a presença de elemento subjetivo da conduta e, portanto, de afirmação que deverá constar da denúncia e imporá o ônus probatório à acusação.
É ônus inafastável do Ministério Público a descrição, na denúncia, de todas as circunstâncias que permitam, no caso concreto, aferir a presença dos elementos do tipo, inclusive o dolo de apropriação do valor não recolhido, bem como a indicação de lastro probatório mínimo a seu respeito. Do contrário, não poderá ser admitida qualquer denúncia pelo artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90, se não por manifesta atipicidade da conduta do contribuinte, ao menos por inépcia ou ausência de justa causa.
Por fim, importante salientar que, a nosso ver, a decisão da Suprema Corte não tenha sido a mais acertada, na medida em que ratificou decisão do Superior Tribunal de Justiça que criminalizava a mera inadimplência e que, ao invés de afirmar a inconstitucionalidade de tal entendimento, preferiu criar elemento de tipo penal, em desrespeito à reserva legal, à taxatividade e à própria separação de poderes, na medida em que representa um verdadeiro deslocamento político-criminal do Estado de Direito para um Estado de jurisdição.
Todavia, ao transformar o artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90 em um crime de resultado cortado, criando o elemento subjetivo dolo de apropriação, o Supremo Tribunal Federal acabou por redesenhar, positivamente, o quadro que havia sido criado pela corte especial em 2018.
[1] Disponível no canal oficial da TV Justiça, no Youtube, https://www.youtube.com/watch?v=O93_DSMYbxo.
[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. 13. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 275.
[3] Ibidem.
[4] Como pretendida na decisão da 3ª Seção do STJ, objeto do RHC 163.334.
Publicado originalmente no Consultor Jurídico.