Por Odel Antun e Leonardo Munhoz
Em resposta aos incêndios que se alastraram pelo Brasil nos últimos meses, o governo federal publicou uma série de normativas. Em seus textos, podemos observar a criação de dispositivos e órgãos voltados para o manejo integrado do fogo, o combate aos incêndios florestais, a concentração da capacidade responsiva aos incêndios e o monitoramento de seus focos. Além disso, houve a alteração de normas já existentes para punição dos incêndios gerados por atividade humana, com agravamento de penas e refinamento dos critérios de culpabilização. Enquanto esse tipo de imposição de pena gera visibilidade com uma simples canetada, investir em melhores condições para os órgãos de fiscalização e aumentar seu efetivo soa caro e impopular.
Nos últimos meses, o Brasil foi vítima de uma forte onda de incêndios florestais, destruindo não somente biomas, matas, mas também fazendas, pastos e plantações. Segundo os últimos levantamentos oficiais do governo brasileiro e o MapBiomas, só neste ano, o fogo consumiu 11,39 milhões de hectares, sendo que, em agosto (o pior mês), queimaram 5,65 milhões de hectares (49% do total do ano até o momento).
Esse desastre nos faz perguntar por que isso está acontecendo e como evitar. Primeiramente, é notório que as mudanças climáticas estão contribuindo de forma severa para o agravamento da estiagem e da seca, elementos-chave para incêndios florestais. Entretanto, outro fator identificado nesses incêndios é o caráter humano, ou seja, não se trata de incêndios provocados por causas naturais (como, por exemplo, raios), mas por atividades humanas, as quais podem ser tanto dolosas, quanto não dolosas (com ou sem intenção).
RESPOSTAS NORMATIVAS
Para responder a essa realidade e minimizar os impactos do fogo, o governo federal publicou uma série de normativas visando combater os incêndios e o crime correspondente.
Do ponto de vista do combate aos incêndios, foi publicada a Lei Federal nº 14.944/24, instituindo a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo. Essa política traça de forma geral o uso articulado interinstitucional para manejo integrado do fogo, redução de danos e combate aos incêndios florestais. Como elemento-chave desse manejo integrado, a política possui como diretriz central a integração e a coordenação das instituições públicas e privadas.
Nesse sentido, também foi publicado o Decreto Federal nº 12.173/24, criando o Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo, com o propósito de concentrar a capacidade responsiva aos incêndios, facilitando a articulação institucional, a criação de normas específicas, mecanismos de coordenação, diretrizes etc. Certamente, o aspecto mais prático desse Decreto é a criação do Centro Integrado Multiagência de Coordenação Operacional Federal (Ciman Federal), um centro de inteligência para monitorar a situação dos incêndios e coordenar o combate aos focos. Esse Decreto tem, claramente, o caráter de desenvolver um órgão específico para combate articulado ao fogo, algo que o Brasil ainda não tinha.
Do ponto de vista de responsabilização e punição pelos incêndios gerados por atividade humana, o Governo publicou o Decreto Federal nº 12.189/24, que alterou o Decreto de Infrações Administrativas Ambientais (Decreto Federal nº 6.514/08) com o intuito de agravar as punições para quem cometer infração de fogo. Atear fogo sempre foi infração administrativa, entretanto essa alteração normativa visa agravar esse tipo de conduta. O Decreto não só aumenta os valores das multas (R$ 3 mil para R$ 10 mil por hectare) em casos de incêndio em florestas, mas também amplia a punição para caráter cautelar, ou seja, a autoridade competente pode responsabilizar/embargar um proprietário de qualquer área que tenha sido queimada, sem necessitar identificar se ele de fato realizou a infração.
ALTERAÇÕES ADMINISTRATIVAS
A despeito das inovações normativas realizadas pelo poder Executivo federal, nem sempre novas normas conseguem fornecer as respostas na prática. Essas normas compartilham uma abordagem fortemente baseada em comando e controle. Sob essa abordagem, os formuladores de políticas regulam diretamente atividades com impactos ambientais, concedendo permissões e estabelecendo proibições e punições. Dessa perspectiva, a abordagem de comando e controle parece ser extremamente eficaz – basta proibir e punir. No entanto, isso não se provou verdadeiro na prática, pois a abordagem é cara de manter, devido aos custos de pessoal e infraestrutura administrativa.
Nesse ponto, as respostas do Governo parecem insuficientes. Com o ápice dos incêndios em agosto e setembro últimos, a União está destinando R$ 514,5 milhões adicionais para ações emergenciais de combate aos efeitos dos incêndios, contando com a contratação de mais brigadistas – agora, com 3.299 brigadistas federais vinculados ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
“A despeito das inovações normativas realizadas pelo poder Executivo federal, nem sempre novas normas conseguem fornecer as respostas na prática. Essas normas compartilham uma abordagem fortemente baseada em comando e controle.”
A título de comparação a outros países, fica evidente que essa ação não é o bastante. Os Estados Unidos, que possuem uma área continental semelhante à do Brasil, têm atualmente 11.393 brigadistas disponíveis, segundo a Wildland Firefighters Workforce, do Serviço Florestal do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês) – mais do que o triplo do Brasil após as respostas do governo federal. Como orçamento, os EUA contam com recursos para este ano de aproximadamente US$ 1,73 bilhão; já o Brasil conta com R$ 514,5 milhões.
Aqui, fica gritante a primeira desvantagem de um mecanismo de comando e controle: falta de pessoal e orçamento necessários. Por consequência, a norma existe somente no papel, sem efeitos práticos relevantes.
ALTERAÇÕES CRIMINAIS
No que se refere à tutela penal, desde a edição da Lei nº 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), convivem no nosso ordenamento ambiental: (i) o crime de incêndio, previsto no art. 250 do Código Penal, com penas de reclusão de 3 a 6 anos, que tem por bem jurídico a incolumidade pública e apenas incidentalmente tutela o meio ambiente; e (ii) o crime do artigo 41 da referida Lei de Crimes Ambientais, que, tutelando diretamente o bem jurídico meio ambiente, prevê penas de 2 a 4 anos de reclusão para quem provocar incêndio em mata ou floresta (na redação original).
O crime previsto no art. 250 do Código Penal foi concebido como de perigo concreto, exigindo, para a sua adequação típica, a exposição a perigo à vida, à integridade física ou ao patrimônio de outrem. Configura-se o delito como a causação de incêndios não apenas em florestas ou demais formas de vegetação, mas mesmo em áreas construídas, residências, estabelecimentos etc. Assim, o dispositivo não tem aplicabilidade a incêndios florestais, salvo se houver um incêndio em floresta com exposição a perigo concreto à vida. O dano ambiental é apenas uma questão colateral, mas não um dano em si.
Fica claro que o instrumento de tutela penal para a prevenção e a repressão de incêndios ambientalmente danosos não está no crime de incêndio do Código Penal, mas sim no delito previsto no artigo 41 da Lei de Crimes Ambientais, que desvincula da configuração típica o elemento do perigo concreto à vida para o ato de provocar incêndio em floresta. O bem jurídico tutelado é o meio ambiente ecologicamente equilibrado, especificamente a flora.
Entretanto, neste ano, a já mencionada Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, no seu artigo 51, alterou a redação do artigo 41 da Lei nº 9.605/98 para subtrair a palavra “mata”, substituindo-a pela expressão “demais formas de vegetação”.
Assim, pode-se debater se a alteração passou a incluir o incêndio em lavouras e plantações, ou seja, em “formas de vegetação” que não se inseriam no conceito de “mata”. Parece claro que o incêndio em florestas plantadas que, para além do enfoque econômico, contribuem com a recuperação de áreas degradadas e com a própria conservação da biodiversidade configura o crime do artigo 41. Mas essa conclusão independe da nova redação do artigo, até porque a antiga redação não restringia os termos “floresta” e “mata” às formas primárias ou nativas.
No entanto, a extrapolação do uso do artigo 41 ao cultivo agrícola deve ser vista com cautela. Levando-se em conta o bem jurídico, ou seja, o meio ambiente, fica difícil sustentar que provocar incêndio em uma cultura de batatas, por exemplo, de pequenas dimensões, sem extrapolar os limites do plantio tenha potencialidade lesiva ao bem jurídico ambiental.
Essa interpretação alinha-se com a jurisprudência solidificada no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), bem como a própria definição legal contemplada na mesma Lei nº 14.944/24, no sentido de que “incêndio” é fogo descontrolado. Por outro lado, o fogo controlado, caracterizado por “queimas” monitoradas, não tipifica a conduta do artigo 41. Assim, essa alteração na redação do tipo para “demais formas de vegetação” não tem o poder de criminalizar a conduta de queimar, controladamente, um cultivo agrícola próprio.
A resposta legislativa, como sempre, é casuística, e não fruto de uma política criminal definida ou fruto de pesquisas e análises científicas. A resposta é sempre única no âmbito penal:
1 Pesquisador do Observatório de Conhecimento e Inovação em Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas (OCBio/FGV)
2 Advogado criminalista e sócio- fundador do escritório Antun Advogados Associados
Publicado no AgroAnalysis Novembro 2024, da FGV.