Por Barbara Orihuela
No atual contexto de maior concentração do poder econômico pelas organizações empresariais, desenvolve-se uma criminalidade de difícil detecção e persecução penal, à vista do grau de sofisticação, do seu caráter usualmente transnacional e do distanciamento entre os perpetradores e a coletividade afetada. Uma vez que a pena de prisão se revela pouco eficaz para repressão dessa conduta, torna-se da mais alta relevância a revisão do atual aparato punitivo em face dessa criminalidade econômica, preponderando as penas alternativas.
Desse modo, precipuamente no campo do direito penal econômico, verifica-se uma tendência de substituição da clássica pena privativa de liberdade por penas pecuniárias, restritivas de direitos ou ainda mecanismos penais despenalizadores. Esse fenômeno processual penal decorre não só da devolução à coletividade dos valores obtidos indevidamente, como da melhor concretização das funções preventiva e ressocializadora da pena, diante do perfil desse agente[1], usualmente primário e dotado de favoráveis circunstâncias judiciais.
Ainda assim, é discutível a efetividade dissuasiva da pena pecuniária, considerando os cenários em que a quantia paga seja irrisória, que o agente econômico tente repassar o valor ao consumidor ou que o valor elevado da pena inviabilize a atividade empresarial, acarretando outros custos sociais, como desemprego e aumento dos preços[2]. Somado a isso, identifica-se maior notoriedade pública acerca dos crimes empresariais, acompanhada de clamor social pelo endurecimento das sanções, baseada em uma percepção social de impunidade desses delitos.
Diante disso, em busca de penas alternativas mais eficazes à prevenção da criminalidade econômica, sobressaem as penas infamantes como forma de responsabilização da pessoa física e da pessoa jurídica, cuja análise tem se revelado inevitável. E por mais que toda pena apresente caráter infamante, seja limitando a locomoção individual, seja atingindo o patrimônio, certas penas implicam maior privação da dignidade ao condenado.
Assim, a proposta das penas infamantes, também denominadas shame sanctions, pauta-se na divulgação pública de uma conduta criminosa, afetando a reputação ou imagem do condenado perante a sociedade, uma vez que incidiria um juízo de reprovação moral e social em face de violação à determinada norma[3].
A instrumentalização do shaming como método de controle social foi melhor desenvolvida por John Braithwaite, o qual defende sua forma reintegradora, em detrimento do shaming segregador, que, por sua vez, causa estigmatização, enfraquecendo os vínculos sociais e aumentando os níveis de criminalidade. De acordo com o shaming reintegrador, são imperativos o confronto e a conciliação com a sociedade, de modo que a exposição pública da conduta criminosa é instrumentalizada como forma de internalizar e reafirmar socialmente o comprometimento com as regras[4].
Na prática, essa pena usualmente assume a forma da imposição de divulgação da sentença condenatória irrecorrível em meios de comunicação local, às custas do condenado, como se verifica nas legislações penais estrangeiras[5]. No âmbito do direito penal econômico, a atratividade dessa sanção decorre do entendimento de que o atributo mais significativo do agente de crimes econômicos configuraria não necessariamente o patrimônio, mas sua reputação, seu status socioeconômico[6].
Tendo em vista que, no meio corporativo, as relações são construídas com base na confiança e na estima de seus integrantes, pressupõe-se que a publicidade dos fatos criminosos à sociedade prejudicaria as atividades do condenado na sua esfera de atuação empresarial, evitando novas práticas criminosas[7]. Assim, por um lado, a pena infamante representaria alternativa voltada à minimização da população carcerária e dos custos prisionais, bem como à manutenção do vínculo do empresário com sua empresa[8].
Por outro lado, há de se considerar que a shame sanction corresponde a uma restrição da honra, cuja inviolabilidade se situa consagrada no artigo 5º, inciso X da Constituição Federal, e, consequentemente, da dignidade da pessoa humana, fundamento constitucional do Estado Democrático de Direito. E por mais que o temor de alcance da sanção a membros familiares pudesse representar incentivo de conformidade do ofensor às normas legais, não há como impedir a extensão das consequências negativas do shaming a terceiros inocentes, tampouco controlar as reações sociais decorrentes[9].
Nessa perspectiva, julga-se controverso o caráter ressocializador da sanção infamante, a qual ameaçaria o status socioeconômico e o elevado grau de integração social dos agentes dos crimes econômicos, consistindo, em verdade, em um perigo à ressocialização desses indivíduos, podendo assumir a forma de um shaming segregador. Igualmente, há de se considerar a hipótese em que um agente, que aufere elevados ganhos financeiros com a prática delitiva, vislumbre como mais vantajoso o cometimento do crime econômico em comparação aos prejuízos à honra pessoal, não sendo dissuadido pelos efeitos da pena infamante[10].
No mais, as repercussões da pena infamante não são facilmente limitadas de modo temporário, pois, ainda que a postagem do conteúdo decisório seja mantida durante período determinado, a difusão contínua de informações nas redes sociais contribui a uma estigmatização que ainda perduraria após o cumprimento da pena, verificando-se uma sanção desproporcional, quase perpétua.
Portanto, encontra-se grande resistência na aplicação das shame sanctions à pessoa física, diante dos seus efeitos imprevisíveis à imagem e reputação do indivíduo, capazes de ferir a dignidade da pessoa humana. Cabe, portanto, avaliar se esse argumento se sustenta na aplicação à pessoa jurídica.
No Brasil, constitucionalmente, verifica-se hipótese de responsabilidade penal da pessoa jurídica disposta no artigo 225, §3º, o qual prevê a possibilidade de atribuição de sanções penais às pessoas jurídicas por crimes contra o meio ambiente. E ainda que não regulamentada expressamente, a responsabilidade no âmbito da ordem econômica encontra-se prevista no art. 173, § 5º da Constituição Federal.
Atualmente, a doutrina majoritária posiciona-se contrariamente a esse instituto, em razão da conformidade a requisitos materiais da dogmática penal e princípios penais inerentes ao Estado Democrático de Direito[11]. Em contrapartida, parcela da doutrina sustenta que a responsabilidade penal da pessoa jurídica constitui meio de tutela dos direitos difusos[12], diante da violação a bens jurídicos essenciais por um ente coletivo que envolve inúmeros indivíduos, o que dificulta a delimitação de cada conduta e de sua efetiva contribuição à prática delitiva.
Diante da impossibilidade de aplicação da pena privativa de liberdade à pessoa jurídica, os defensores da responsabilidade penal da pessoa jurídica citam a comunicação pública da decisão condenatória irrecorrível como possível pena alternativa aplicável ao ente coletivo[13], de forma que o juiz determinaria que os motivos da sentença fossem de conhecimento público, o que representaria ameaça à credibilidade e ao potencial comercial da pessoa jurídica, detentora de honra objetiva. Trata-se de pena alternativa já vislumbrada no ordenamento jurídico de outros países, tanto que, no Código Penal português, a publicidade da decisão condenatória consiste em pena acessória aplicável especificamente a pessoas coletivas e entidades equiparadas[14].
Por ora, entende-se que os efeitos da publicidade do crime às pessoas jurídicas ainda são marcados pela imprevisibilidade, pois é impossível prever se determinado dano à reputação da empresa potencialmente provocaria um encerramento de suas atividades, o que conduziria, por exemplo, ao desemprego. Nessa seara, partindo do critério de culpabilidade na cominação da pena, há dificuldades de garantir que a sanção não atinja terceiros que não se encontrem envolvidos na atividade criminosa.
No mais, é inconteste que uma institucionalização da exposição da criminalidade econômica enquanto pena alternativa no Estado Democrático de Direito demanda instituições fortes e a efetivação ampla de direitos fundamentais, principalmente em uma sociedade com elevado acesso à informação. Portanto, no contexto vigente, a única conclusão possível é que, na eventualidade de incorporação das shame sanctions ao ordenamento jurídico-penal brasileiro, seja para pessoas físicas, seja para pessoas jurídicas, tornam-se imprescindíveis contornos legais mais precisos nos âmbitos de fundamento, forma e duração.
E ainda que não se verifiquem sanções dessa natureza no Brasil, não há dúvidas de que a sentença condenatória apresenta o potencial de atingir a imagem da pessoa jurídica perante a sociedade. Assim, havendo a prática de condutas criminosas, a pessoa jurídica pode tentar controlar a narrativa e minimizar os efeitos negativos da exposição pública, mediante a apresentação de um pedido de desculpas e a declaração de aperfeiçoamento ou implantação de medidas internas de compliance e de prevenção[15]. Revertendo uma possível publicidade negativa a seu favor, facilita-se a reconstrução da imagem e da credibilidade corporativa.
[1] PALHARES, Cinthia Rodrigues Menescal. Aspectos políticos das sanções penais econômicas no Direito Brasileiro. In: SOUZA, Artur de Brito Gueiros (Coord.). Inovações no direito penal econômico: contribuições criminológicas, político-criminais e dogmáticas. Brasília: Ideal, 2011, p. 157.
[2] PALHARES, op. cit., p. 164.
[3] SILVA, Otávio Augusto Mantovani. As finalidades da pena no âmbito do Direito Penal Econômico. Orientador: Fernando Andrade Fernandes. 2023. 228 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2023, p. 180.
[4] BRAITHWAITE, John. Crime, shame and reintegration. New York: Cambridge University, 1999, p. 140.
[5] No Código Penal mexicano, a pena de publicidade da decisão condenatória está disposta em seu artigo 47, enquanto no Código Penal francês, a “peine d’affichage de la décision prononcée ou de diffusion” é aplicável tanto às pessoas físicas (art. 131-35) como jurídicas (art. 131-39-9º).
[6] GOPALAN, Sandeep. Shame sanctions and excessive CEO pay. Delaware Journal of Corporate Law, vol. 32,
[7] KAHAN, Dan M.; POSNER, Eric A. Shaming white-collar criminals: A proposal for reform of the federal sentencing guidelines. Journal of Law & Economics, v. 41, n. 2, 1998, p. 371.
[8] RUIVO, Marcelo Almeida. Penas infamantes no direito penal empresarial brasileiro: pressupostos para uma
análise de constitucionalidade. Boletim IBCCrim, São Paulo, v. 25, n. 293, p. 13-14, abr. 2017, p. 14.
[9] GOPALAN, op. cit., p. 774-775.
[10] RUIVO, op. cit., p. 14.
[11] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. Editora Saraiva, 3. ed., 2020, p. 194.
[12] BUSATO, Paulo César. A responsabilidade criminal de pessoas jurídicas na história do direito positivo brasileiro. Revista de Informação Legislativa, v. 55, n. 218, p. 85-98, abr./jun. 2018.
[13] SANCTIS, Fausto Martin de. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 149.
[14] Nesse sentido, o artigo Artigo 90.º-M do Código Penal Português dispõe o seguinte:
“Publicidade da decisão condenatória
1 – A decisão condenatória é sempre publicada nos casos em que sejam aplicadas as penas previstas nos artigos 90.º-C, 90.º-J e 90.º-L, podendo sê-lo nos restantes casos.
2 – Sempre que for aplicada a pena de publicidade da decisão condenatória, esta é efectivada, a expensas da condenada, em meio de comunicação social a determinar pelo tribunal, bem como através da afixação de edital, por período não inferior a 30 dias, no próprio estabelecimento comercial ou industrial ou no local de exercício da actividade, por forma bem visível ao público.
3 – A publicidade da decisão condenatória é feita por extracto, de que constam os elementos da infracção e as sanções aplicadas, bem como a identificação das pessoas colectivas ou entidades equiparadas.”
[15] SCANDELARI, Gustavo Britta; POZZOBON, Roberson Henrique. Shaming como uma via para a sanção criminal de pessoas jurídicas no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 151, ano 27, jan. 2019, p. 107.