Por Thainá Carício
Na Itália, não raro se tem notícias de grandes mafiosos que passam décadas sendo procurados pela Polícia, que, mesmo com todo o aparato estatal, não consegue localizá-los. É como se, de fato, esses criminosos desaparecessem. Tal situação pode ser, ao menos em parte, explicada pela existência da chamada omertà[1]: um código de honra usado entre os integrantes da máfia, por meio do qual se estabelece a lei do silêncio, o que impede qualquer cooperação com as autoridades policiais ou judiciárias. O provérbio da região da Sicília “quem fala pouco viverá 100 anos” traduz bem a força do silêncio imposto.
No Brasil, especialmente nos delitos que envolvem organizações criminosas, também há um alto poder de intimidação daqueles que integram esses grupos, aliado ao desfazimento de provas importantes, fazendo com que os órgãos de persecução penal encontrem enormes desafios nas investigações. É nesse cenário que a justiça penal negocial tem ganhado força nos últimos anos e, aqui, destaca-se a colaboração premiada, que é um dos institutos relevantes do modelo consensual.
A colaboração premiada, disciplinada na Lei nº 12.850/13, é um acordo firmado entre o Ministério Público ou o Delegado de Polícia e o imputado, por meio do qual este, além de confessar sua participação na empreitada criminosa, atribui a autoria a uma ou mais pessoas, em troca de benefícios penais.
Com o acordo firmado, não há dúvidas de que se reduz a carga probatória estatal, direciona-se melhor a investigação a partir dos elementos trazidos pelo colaborador, além de que se possibilita alcançar uma melhor compreensão da dinâmica do crime, já que “é entre os criminosos que mais se conhecerá do crime investigado – eficiência máxima” (CORDEIRO, Nefi. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles/ Nefi Cordeiro – Rio de Janeiro: Forense, 2020).
Durante a operação Lava-Jato, tida como uma das maiores investigações de corrupção e lavagem de dinheiro no país, foram firmados diversos acordos de colaboração premiada com os envolvidos, destacando-se aqui aqueles celebrados com Paulo Roberto Costa (ex-diretor de abastecimento da Petrobras) e Alberto Youssef (doleiro), nos quais foram pactuados diversos benefícios não previstos em lei.
Necessário que se diga que, a depender dos resultados obtidos a partir das declarações do colaborador, a Lei de Organizações Criminosas estabelece diferentes benefícios a serem concedidos, tais quais: a) perdão judicial; b) imunidade (não oferecimento de denúncia); c) redução em até 2/3 (dois terços) da pena privativa de liberdade ou sua substituição por restritiva de direitos; e d) redução da pena até a metade ou a progressão de regime, ainda que ausentes os requisitos objetivos.
No acordo com Alberto Youssef[2], por exemplo, podemos citar como prêmios que não encontram previsão legal a cláusula que autorizou suas filhas a utilizarem veículos que foram declarados por ele como produto e/ou proveito de crime durante o período em que estivesse preso em regime fechado (Cláusula 7ª, §§ 5º e 6º); ou mesmo aquela que autorizou a liberação, em favor da ex-mulher e das filhas, de dois imóveis, os quais também seriam frutos da empreitada criminosa.
A doutrina e a jurisprudência passaram, então, a travar importantes discussões acerca da possibilidade ou não do órgão de investigação – Ministério Público ou Polícia – conceder benefícios penais não abrangidos pelo texto legal. A ideia era compreender, primeiramente, se as sanções premiais previstas em lei configuravam hipótese taxativa ou se poderiam ser ampliadas pelas autoridades públicas que estavam à frente da negociação.
De um lado, se defende que o acordo de colaboração premiada está inserido em um contexto de autonomia negocial, em que as partes podem pactuar livremente acerca dos possíveis benefícios a serem concedidos. Como defensor de tal posicionamento, é possível citar o professor e Procurador da República Andrey Borges de Mendonça, para o qual “no processo penal consensual, calcado na autonomia da vontade, o princípio da legalidade pode ter uma interpretação menos rígida do que no processo penal tradicional”.
De outro, argumenta-se que os acordos celebrados no âmbito do Direito Penal estão inseridos em um contexto de interesse público, não podendo ser irrestritamente transigidos. Especialmente porque o acordo de colaboração premiada é meio de obtenção de prova, “não se pode aceitar que o Estado “incentive” investigados criminalmente com benefícios ilegais ou ilegítimos”[3]. Assim, seria necessária a plena observação aos benefícios premiais previstos em lei.
Justamente adotando o viés mais legalista, Canotilho e Brandão entendem que a concessão de benefícios penais extralegais não deve ser admitida, uma vez que o acordo atinge direitos fundamentais de terceiros (réus delatados), defendendo a regra da taxatividade dos prêmios previstos na Lei de Organizações Criminosas. Para eles, “é terminantemente proibida a promessa e/ou a concessão de vantagens desprovidas de expressa base legal”.[4]
Essa parece ter sido também a vontade do legislador, que, no ano de 2019, por meio do Pacote Anticrime, fez inserir o art. 4º, § 7, inc. II, à Lei 12.850/13, dispositivo que estabelece a nulidade de cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena, as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e os requisitos de progressão de regime. Assim, não obstante não tenha citado todas as possibilidades de cláusulas extralegais, mesmo porque são infinitas, é evidente que o legislador pretendeu estreitar o campo de discricionariedade, inclinando-se ao citado princípio da taxatividade.
Em importante julgado sobre o tema (HC 142.205/PR), o Supremo Tribunal Federal declarou a nulidade de termo aditivo de acordo de colaboração premiada celebrado no âmbito da Operação Publicano, tendo como cerne da questão o debate acerca de cláusulas ilegais e benefícios abusivos. Na oportunidade, o ilustre Ministro Gilmar Mendes ressaltou a necessidade de observância da legalidade, consoante se observa do trecho a seguir:
Portanto, deve-se invariavelmente respeitar a legalidade, tendo em vista que as previsões normativas caracterizam limitação ao poder negocial no processo penal. Portanto, em caso de ilegalidade manifesta em acordo de colaboração premiada, o Poder Judiciário deve agir para a efetiva proteção de direitos fundamentais.
Assim, é possível notar que a jurisprudência e o próprio legislativo vêm se direcionando à corrente que entende o rol de benefícios previstos na Lei de Organizações Criminosas como taxativo. Afinal, a concessão irrestrita de prêmios acaba por servir como verdadeiro incentivo desenfreado à realização de colaboração premiada, que, não se deve esquecer, é meio de obtenção de prova.
Dito isso, indaga-se se seria possível a um terceiro delatado impugnar acordo de colaboração premiada que pactue benefícios não previstos em lei. E a resposta nos parece ser positiva.
Sobre o tema, prevalecia no Supremo Tribunal Federal o posicionamento firmado por ocasião do julgamento do HC nº 127.483/PR, segundo o qual não seria possível a impugnação do acordo de colaboração premiada por terceiro delatado, uma vez que “como negócio jurídico personalíssimo, não vincula o delatado e não atinge diretamente sua esfera jurídica”.
No entanto, no julgamento do já citado HC nº 142.205/PR, a Corte Suprema admitiu a intervenção de terceiros delatados. Para o Ilustre Ministro Gilmar Mendes, relator da ação, “é evidente e inquestionável que a esfera de terceiros delatados é afetada pela homologação de acordos ilegais e ilegítimos”.
De fato, não há dúvidas de que existe um gravoso impacto à esfera de direitos do delatado, uma vez que se está diante de um acordo feito pelo Estado, em que se beneficia penalmente um corréu (delator) em troca de informações que auxiliem a investigação. Assim, quanto mais elementos o delator oferecer à acusação, melhor premiação ele alcançará, podendo, inclusive, não ser sequer denunciado (imunidade).
Os professores Aury Lopes Júnior, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Alexandre Morais da Rosa, inclusive, afirmam que o acordo de delação premiada possui repercussão dúplice, pois minimiza o risco processual de eventual improcedência da demanda, para a acusação, como maximiza o perigo para eventuais delatados. Em seus dizeres:
É interessante como a delação/colaboração reduz o fator risco para acusação e defesa-delatadora, mas potencializa o risco para os delatados, corréus que agora terão uma variável probatória da maior relevância: o “fogo-amigo” do delator.
Note-se que, por sua própria natureza, o acordo de colaboração premiada, por decorrer da concessão mútua de benefícios em prejuízo de terceiros, acarreta a existência de interesse processual e legitimidade para eventual impugnação, considerando o princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Portanto, é possível concluir que o acordo de colaboração premiada com a pactuação de benesses extralegais encontra-se eivado de ilegalidade e, sendo ilegal, poderá ser impugnado por terceiro delatado, que tem sua esfera de direitos atingida diretamente pelo acordo.
Referências
BADARÓ, Gustavo. A colaboração premiada: meio de prova, meio de obtenção de prova ou um novo modelo de justiça penal não epistêmica? In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria Thereza de Assis [Org.]. Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas corpus nº 127.483-PR, Brasília, DF, 27 ago. 2015. Disponível em: < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10199666 >
CANOTILHO, JJG; BRANDÃO, N. Colaboração Premiada e auxílio judiciário em matéria penal: a ordem pública como obstáculo à cooperação com a operação Lava Jato. Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra, ano 146°, n° 4000, p. 16-38, set./out. 2016.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Delação premiada no limite: a controvertida justiça negocial made in Brazil/ Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa._Florianópolis:EMais, 2018.
CORDEIRO, Nefi. Colaboração premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
MENDONÇA, Andrey Borges. Os benefícios possíveis na colaboração premiada: entre a legalidade e a autonomia da vontade. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; MOURA, Maria Thereza de Assis (Coord.). Colaboração premiada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017
STF, HC 142.205/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 25.08.2020; STF, HC 143.427/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 25.08.2020.
[1] Omertà (do latim humilitas; “humildade”) é um termo da língua napolitana que define um código de honra de organizações mafiosas do Sul da Itália. Fundamenta-se num forte sentido de família e num voto de silêncio que impede cooperar com autoridades policiais ou judiciárias, seja em direta relação pessoal como quando fatos envolvem terceiros. Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Omert%C3%A0 >
[2] https://www.conjur.com.br/dl/acordo-delacao-youssef.pdf
STF, HC 142.205/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 25.08.2020; STF, HC 143.427/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, J. 25.08.2020.
[4] https://www.conjur.com.br/2017-mai-24/delacoes-lava-jato-sao-ostensivamente-ilegais-canotilho